Moro num apartamento que  escolhi, comprei, está em meu nome, o único bem no mundo, não contando o  automóvel, que está em meu nome, porque nunca quis ter coisas que me  pertencessem e, no entanto, não me abandona a impressão de morar num  hotel, numa espécie de suite com alguns quartos. Faço cerimónia, não  ligo aos móveis, não ligo aos objectos, escrevo aqui como fui escrevendo  em tantos outros sítios, em Portugal e no estrangeiro, e não me sinto  em casa, dá-me ideia de habitar, por empréstimo, o lugar de um outro que  não conheço e que, a qualquer momento, vai entrar e mandar-me embora,  falta-me o sentido de propriedade do que quer que seja, onde eu gostava  mesmo de viver era num comboio, prestes a viajar, que não partisse  nunca. Os comboios sempre me fizeram sonhar. Os comboios? Quase tudo me  faz sonhar, que esquisito. Às vezes parece-me que sou uma nuvem com  raízes, sempre a partir e a ficar. Não abandono os sítios de que me fui  embora, coloquei a alma, escondida, sob cada objecto. Continuo em Veneza  com sete anos, em Berlim com quarenta, não saí do lago do Jardim  Zoológico, onde passeava, com o meu avô, num barco com pedais. Lembro-me  dos patos, dos cisnes, de ser tão feliz, lembro-me de tudo. Não esqueci  nada, não vou esquecer nada. Sofrimentos de amor aos doze anos, os  primeiros versos, um pardal de pata quebrada que o sapateiro consertou  com uma tala de cana. Certos perfumes nos elevadores vazios, as  conversas, cheias de palavras desconhecidas, dos adultos, ajudar à missa  na igreja gelada, a dor dos outros, que invariavelmente me aflige, o  sacristão coxo, de Nelas, a pedalar uma trotineta que não existia. O  sorriso raro do meu pai, as duas empregadas da minha avó a beijarem-se.  Vidas pequeninas que eu não compreendia. A profunda solidão das pessoas.  O meu espanto diante das criaturas amargas. Entendo a tristeza, entendo  o desejo de suicídio, não entendo a amargura, o azedume, a avidez. Nem a  antipatia, nem a inveja, nem a vaidade. Hoje passei pela igreja de  Santo António onde, em criança, entrei tanta vez. Acho que ele me salvou  das três doenças difíceis que tive. Com seis anos a minha palma no seu  túmulo, em Pádua. Há-de estar lá, bem impressa, a marca destes dedos.  Intermináveis discursos diante de quadros e estátuas, que me aborreciam  de morte. Entre parênteses também não entendo a morte e, quanto à vida,  será que a entendo de facto? Ou à minha adolescência, veemente e  confusa? O desejo informulado, a descoberta atónita do sexo. Que  mistério, à luz da madrugada, o corpo que se transforma e cresce e,  depois, a minha cara no lençol como num sudário. Agora veio-me à cabeça  um amigo meu, Frei Bento Domingues. Um dia disse-lhe
- Estás sempre tão alegre
ele respondeu
- O que eu podia eu ser senão alegre?
e não conheço mais nenhuma pessoa em que até os óculos riem, não  conheço ninguém com tanta esperança, tanta curiosidade infantil, tanta  fé de olhos abertos, tanta tolerância. Raios o partam. Comecei pela casa  mas aquela que sinto minha fica longe e já não nos pertence. Não me  atrevo a entrar, olho-a de longe, quase a medo, e é tudo. Passo na  estrada, penso
- Ali era a casa
corrijo
- Ali é a casa
e fujo. Quase tudo mudou nas redondezas, aliás, quase toda a gente  faleceu. O casaco do meu outro avô, cheio de palitos. As duas lareiras  da sala. Não era uma casa de ricos, recordo-me de imensas chávenas com a  asa quebrada, recordo-me da mesa de pingue-pongue no andar de baixo e  dos sons repetidos, cada vez mais rápidos, cada vez mais ténues, da bola  ao cair no chão de pedra. Da vinha. Das vindimas. Olha, lá estão as  empregadas a beijarem-se de novo e eu, parvo, sem entender. Beijos como  no cinema, cochichos ternos. Fugi também, ocultando a minha perplexidade  na trepadeira, cheia de insectos e lagartixas. 
Afastava-me, com receio dos bichos, até ao muro ao lado da cancela. A  estrada deserta, nem uma velha num burro, nem uma pessoa com um atado  de lenha à cabeça. Comecei a escutar um barulho de guizos ao longe, um  barulho de rodas de carroça, um barulho de vozes. A estrada tornava-se  negra, vibrante, cheia de ecos que cresciam, eixos mal oleados, pranchas  desconjuntadas, o que se me afigurava um canto. E, então, passaram os  ciganos.