segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

O 'DIÁLOGO' IMPOSSÍVEL

1. A Plataforma Sindical dos professores exagera quando não aprecia devidamente o recuo e a humildade com que a ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, soube emendar a falta de tacto político que a certa altura lhe guiou os passos na introdução da avaliação aos professores. Uma coisa é simplificar processos, reconhecer a existência de problemas na relação avaliador-avaliado, mostrar abertura para dialogar; outra coisa, diferente, seria abdicar completamente de um projecto importante para a melhoria do ensino em Portugal e consequente requalificação do ambiente escolar.

Por muitos erros que tenha cometido - e cometeu alguns - a ministra tem razão no essencial, e a verdade é que começa a ser evidente para a opinião pública que há uma parte significativa dos professores que não quer qualquer avaliação. Essa parte da classe protesta o contrário mas, no fundo, claramente pretende o regresso ao passado de uma escola onde os professores bons e maus conviviam como se fossem frutos da mesma árvore.

Não são.

E, pelo meio, os sindicatos, com a Fenprof à cabeça, mais do que a paz nas escolas, para descanso dos pais e devida classificação dos alunos, apostam num braço-de-ferro político com o Governo.

Há um limite para tudo. Nesta questão, depois dos desenvolvimentos das últimas semanas, nomeadamente após a confissão de humildade da ministra, chegou o momento de dizer que o Governo não pode nem deve recuar mais. Os sindicatos e as corporações já governaram Portugal durante décadas. O resultado está à vista - e obviamente não apenas nas escolas. Desse "diálogo" já houve que chegue.

2. Um governo democrático, legítimo, ainda para mais com maioria absoluta, deve lutar pelas suas convicções, ver para além das dificuldades do presente.

É certo que, num primeiro momento, o ministério avaliou mal a carga de trabalho que estava a colocar sobre os docentes nesta fase. Um processo destes deve ser implementado por fases e sobretudo analisando bem a qualidade média da população a que se destina. Essa avaliação falhou.

Agora, em sentido inverso, falha a percepção que os professores têm do seu lugar na sociedade.

Uma escola não se faz para os professores, como um tribunal não existe para os juízes e advogados ou um jornal para os jornalistas. Uma escola funciona para servir uma comunidade e, sobretudo, para formar gente melhor e mais qualificada. É neste âmbito que os professores devem ver a sua acção e perceber a missão do Estado.

A proposta da auto-avaliação, assente na assiduidade, feita agora pelos sindicatos para "fechar" este ano, é obviamente inaceitável. Quem está de fora e de boa-fé entende que a solução a encontrar não pode ferir a face de qualquer das duas partes. A dos professores, fruto da sua indignação e protesto, acabou por ser garantida. Mas esta obstinação dos sindicatos fere a legitimidade do Governo e a convicção da ministra. Mário Nogueira trai-se quando diz que Sócrates "se quer guerra, vai tê- -la". Para o professor sindicalista da CGTP o objectivo é fazer capitular o Governo. No dia em que os professores, de uma maneira geral, assumirem este objectivo perderão a simpatia que a determinada altura ganharam com a seu indignação. Vamos a ver se o compreendem a tempo.

O PSD ainda não sabe o que fazer na questão do Estatuto dos Açores (vota com Sócrates ou por Cavaco?...) mas já sabe como reparar a mais recente e notória "balda" dos seus deputados: vai apresentar um projecto de lei a propor a suspensão da avaliação aos professores ("defendendo naturalmente sempre a avaliação", no dizer de Paulo Rangel)! Uma vergonha tapa-se com a demagogia mais básica. E assim vai a política à portuguesa.


'João Marcelino'

O HOMEM QUE DECRETOU O FIM DA CÓLERA

Robert Mugabe disse esta semana: "Estou feliz por ter acabado com a cólera." Ao mesmo tempo, a ONU fez outro balanço: a cólera continua, já fez quase 800 mortos e 16 mil pessoas estão na lista de espera. As duas declarações são produto de duas concepções filosóficas diferentes. Há os homens de pouca fé, demasiado agarrados à ditadura dos factos - infelizmente a mais alta instância internacional está cheia desses cínicos. E, depois, há os visionários que acreditam que o fim da cólera é quando o homem quiser. Mugabe é um desses.

A direcção de um país dá a certos políticos o exercício de um poder que os aparenta a deuses: o decreto. Nos anos 60, Salazar aboliu a prostituição. Os homens de pouca fé de então também sorriram, a pretexto da suposta ineficácia da medida. Mas, na verdade, Salazar acabou com a prostituição: tendo decretado que as prostitutas acabaram, elas acabaram. Talvez tenha continuado a haver mulheres nas esquinas do Martim Moniz, que subiam aos quartos das pensões manhosas com homens desconhecidos, talvez tivessem relações sexuais a troco de uma nota de 50 escudos, talvez, mas o facto era inquestionável: as prostitutas tinham deixado de existir. Como prova, havia o tal decreto.

Mais próximo de Mugabe, outro homem de vontade incomensurável: o Imperador Jean- -Bedel Bokassa, da República Centro Africana, também adepto do decreto como arma de construção massiva de ilusões. Um dia, em 1976, ele decretou: "Está abolida a burguesia." E a verdade é que da burguesia centro-africana nunca mais ninguém ouviu falar. Essa é que é essa. O mesmo acontecerá provavelmente com a cólera zimbabwiana. Um decreto é uma medida de fundo. Deixem o Mugabe continuar a decretar e poderemos estar certos de que acabará com a cólera zimbabwiana. E também com os zimbabwianos, aliás.

Como estão lembrados, na Cimeira Euro-Africana de Lisboa, há um ano, a maioria dos países africanos opuseram-se a sanções a Mugabe. Ele fazia mal aos seus, é certo, mas aquilo era um problema interno. A questão actual é que o jeito tão dele de tratar os seus conterrâneos exporta o problema. As regiões fronteiras na África do Sul e em Moçambique foram declaradas zonas de calamidade.

E a cólera na África do Sul e em Moçambique é um problema muito mais grave do que no Zimbabwe: os decretos de Mugabe não têm efeito além-fronteiras. Ele bem pode decretar: "A partir desta data fica abolida a cólera na região de Manica", mas isso não surte efeito naquela região moçambicana. A poção mágica dos visionários geralmente só vai onde chega o bastão dos seus polícias.

A solução não está em combater Mugabe mas em adoptar-lhe a táctica: o que os dirigentes africanos deviam fazer era decretar. O fim de Mugabe, claro.


'Ferreira Fernandes'

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O Nobel da literatura que os soviéticos tentaram evitar

Há 50 anos, em plena Guerra-fria, a Academia Sueca atribuía o Nobel da Literatura a Boris Pasternak por causa de um livro, uma história de amor entre um médico poeta e uma filha da aristocracia com a Revolução de Outubro como triste pano de fundo. Dr. Jivago tornou-se um dos romances mais populares do séc. XX mas a União Soviética deixou o autor morrer sem colher os louros.

Era uma vez outro tempo. Há meio século, numa era em que o mundo se dividia em dois e a literatura tinha tanta importância que os governos se sentiam ameaçados pelos escritores. Num gesto que, sem deixar de ser político, tinha a sua justificação literária, a Academia Sueca entregava o Nobel da Literatura a Boris Leonodovich Pasternak, poeta popularíssimo entre os russos que, em 1957, tinha conseguido contrabandear para o Ocidente um fresco desencantado sobre a União Soviética, com a Revolução de Outubro como pano de fundo.

O livro vinha impregnado da aura romântica das obras que conseguem ver a luz do dia apesar de todas as vicissitudes. Escrito na Rússia ao longo de quase quatro décadas é, ao mesmo tempo, um manifesto de amor à arte como fim em si mesmo, uma história de amor grandiosa, um épico histórico sobre a União Soviética que se ergue sobre os escombros dourados da Rússia dos czares e uma obra súmula das preocupações do seu autor.

Pasternak, a quem a política e os grandes movimentos sociais interessavam menos do que a arte em si, o mundo não se moldava pelo homem e as suas acções; influenciado essencialmente por correntes de amor, fé e destino, o mundo tinha pouco de construção e mais de consequência das vidas de cada indivíduo. Como o amor entre o Dr. Jivago e Lara, belo e trágico, quase sempre adiado, ao sabor dos destinos que se entrechocam e cujo idealismo sucumbe diante dos horrores que vão cometendo os exércitos Vermelho e Branco.

A existência do Dr. Jivago tem muito a ver com o destino escolhido pelo escritor. Nascido numa família de artistas judeus da cosmopolita Moscovo do final do século XX, filho do pintor Leonid Pasternak e da pianista Raitza Kaufman, Boris Pasternak pertencia a uma estirpe desprezada pela Revolução de Outubro.

Tendo crescido entre alguns dos maiores vultos da cultura da viragem do século - como Rainer Maria Rilke, visita lá de casa, de quem depois se tornaria grande admirador e tradutor - e apesar da maior parte dos seus familiares ter optado pelo exílio depois do triunfo Vermelho em 1917, o escritor preferiu ficar.

Por ter tomado essa decisão, por essa curiosidade intelectual em relação à experiência bolchevique primeiro e depois por temer que nunca mais o deixassem regressar, viu os seus pais pela última vez em 1922, quando recebeu autorização para os visitar em Berlim.|

Contrabandeado desde Moscovo por um jovem italiano desencantado com a sua experiência soviética, Sergio D'Angelo; editado em Itália pela primeira vez numa pequena editora de um playboy comunista a que os acontecimentos na Hungria tinham abalado a fé na União Soviética, Giangiacomo Feltrinell; o Dr. Jivago só viu a luz do dia e teve este impacto e de forma tão rápida pela capacidade do editor em resistir às pressões e visão de marketing.

Ao saber da notícia do Nobel, Pasternak enviou um telegrama para Estocolmo: "Extremamente agradecido, comovido, orgulhoso, surpreendido, atónito". Quatro dias depois, pressionado pelas autoridades soviéticas, recusaria o prémio: "Considerando o significado atribuído a este prémio na sociedade a que pertenço, tenho de o recusar. Por favor, não se ofendam com a minha rejeição voluntária".


'António Rodrigues'

O que se segue no processo da avaliação

A ministra da Educação cometeu vários erros na imposição de um sistema de avaliação aos professores. Entre eles, a má comunicação do processo, associada às críticas constantes e destrutivas para a classe e ainda a complicação e burocratização do modelo que, tendo em conta o que entretanto Maria de Lurdes Rodrigues já admitiu e modificou, não tinha sido testado. Se somarmos a tudo isto o facto de as divergências já virem de trás, face às alterações impostas pela reforma da educação (aulas de substituição, inglês obrigatório no primeiro ciclo, escolas abertas até mais tarde, etc.), percebe-se que houve alguma falta de bom senso a lidar com o problema e que o Governo parece não ter aprendido a lição com as polémicas que levaram à saída de Correia de Campos da pasta da Saúde e que a actual ministra entretanto soube calar.

Mas todos estes factos não retiram a razão à ministra e à sua política (prioritária para o País) e muito menos validam a actuação dos professores e dos sindicatos que os representam nas recentes formas de contestação. Ainda que tarde de mais, o Ministério da Educação cedeu às principais críticas: simplificou o modelo, adiou os efeitos da sua aplicação, alterou muitas das suas permissas e sentou-se à mesa para negociar. Ontem mesmo, em dia de uma greve que prejudicou pais e alunos, abriu mais uma porta, com o anúncio de que admitia prorrogar o prazo do processo de transição, aplicando-o só no próximo ano lectivo.

Mas sindicatos e professores insistiram numa posição de irredutibilidade inadmissível. Rogando-se o direito de impor condições ao Governo para negociar e resumindo tudo a uma única exigência: a suspensão da avaliação, afinal aquilo que os professores rejeitam em absoluto e não o seu modelo. Perante tamanha intransigência, ao Governo resta aplicar as consequências, responsabilizando os professores pelos seus actos, o que impedirá milhares de progredir na carreira. Porque com radicais, mesmo muitos, é impossível negociar.


'Editorial do DN de 04-12-2008'

O fantasma cavaquista

De cada vez que se abate um escândalo sobre algumas empresas parece que assistimos àqueles programas televisivos em que se procuram antigas vedetas desaparecidas. Levantamos as pedras de um banco nacional e saem de lá, como lacraus atarantados, dezenas de ex-ministros e ex-secretários de Estado. O PSD trata mais a banca e o PS prefere a construção civil. Mas a regra não é linear.
O pedregulho mais interessante está a ser o do BPN. Foi ali que repousou a nata do cavaquismo na sua travessia por desertos marroquinos e escapadelas a Porto Rico, passando por "off-shores" com nomes pomposos.

O cavaquismo foi o tempo de todas as oportunidades. O dinheiro entrava no país e evaporava-se em obras públicas, é verdade, mas também em cursos de formação-fantasma, em universidades privadas manhosas e numa casta de novíssimos ricos. Foi assim que o cavaquismo morreu. Submerso em escândalos pequenos e grandes, de que o jornal de Paulo Portas dava conta, com pontualidade semanal. Depois da experiência o PSD nunca mais foi o mesmo. O país, esse, perdeu a sua última oportunidade histórica. Aquele dinheiro nunca mais volta e estamos hoje na cauda da cauda da Europa. Acabou a festa e vivemos a ressaca.

O tempo passou e não há nada que o tempo não cure. A "entourage" de Cavaco mandou limpar os fatos um pouco enlameados. Transformaram-se em respeitáveis empresários e excelentíssimos senadores da nação. Mas se é verdade que tempo cura tudo, não é menos verdade que com ele tudo volta. E os cavaquistas voltaram para ensombrar a beatificação do seu austero patrono.

Ao ouvir os relatos do que se passava no BPN, contados na primeira pessoa por Dias Loureiro, tivemos o privilégio de olhar pelo buraco da fechadura. Loureiro era administrador na Sociedade Lusa de Negócios (adoro este nome) e diz que sabia do que se passava no seu grupo pelos "bruaás" que lia nos jornais e ouvia nos salões. Ouvia os "bruaás" mas continuava a assinar as contas, porque estava rodeado de pessoas em quem "confiava cegamente". Fazia queixas ao Banco de Portugal em conversas informais - diz ele, que o vice da entidade reguladora diz exactamente o contrário - e continuava, na sua infinita ingenuidade, a assinar tudo por baixo. Fazia negócios e não sabia onde estava o dinheiro dos negócios. Despachava sozinho com Oliveira Costa, porque por lá não havia reuniões. E, mesmo não achando nada disto normal, deixava andar.

Cada um acreditará ou não nas interessantes histórias de Dias Loureiro. Mas uma coisa é certa: o seu nome está no meio deste furacão. O seu e o de muitas figuras centrais da constelação cavaquista. O Presidente sabe disso e, muito legitimamente, enviou insistentes sinais de fumo a Loureiro. Ao nada discreto incómodo do Presidente, Loureiro respondeu com uma visita sem convite a Belém, colando ainda mais Cavaco Silva ao seu infortúnio. Nada a fazer: o Presidente, que se preparava para um fim de carreira sem sobressaltos, enfrenta agora os fantasmas do passado. Para desespero de Cavaco e do PSD, o cavaquismo voltou para o ensombrar. É a criatura a tentar regressar ao regaço do criador.


'Daniel Oliveira'

A direita de Novembro

A cena repete-se todos os anos: no dia 25 de Novembro, a direita portuguesa celebra a derrota do comunismo. O 25 de Novembro (25/11) é a oportunidade para os direitistas elaborarem uma inconsequente birra ideológica. Se deixasse de lado esta teatralidade, a direita talvez percebesse que o 25/11 é a causa principal da ilegitimidade das ideias liberais e conservadoras em Portugal. A inferioridade moral imposta à direita portuguesa não advém do 25 de Abril, mas sim do 25/11.

Nos anos do PREC, uma estranha forma de pluralismo circulava de boca em boca: o 'pluralismo socialista'. Aqueles que lutavam contra o 'socialismo autoritário' do PCP defendiam, em alternativa, um 'pluralismo socialista'. Na prática, isto significava o quê? Bom, significava que Portugal deveria ter vários partidos políticos, mas todos esses partidos tinham de ser socialistas. Mas que pluralismo poderia existir quando toda a gente era obrigada a ser socialista? Ora, o 25/11 consagrou este estranho pluralismo. Isto porque o PCP conseguiu impor um acordo que marcou a vida do regime até aos nossos dias. Os comunistas desistiram da ditadura comunista de partido único e aceitaram a democracia pluralista, mas, em troca, exigiram que todos os partidos tinham de respeitar a via socialista.

Foi este acordo que transformou este regime na coisa monocórdica que conhecemos. Foi este pacto entre o 'socialismo autoritário' e o 'socialismo pluralista' que deu o carácter apolítico e antipluralista à nossa democracia. Em 2008, ainda não existe um real pluralismo ideológico. Trinta e três anos depois, o nosso leque de escolhas continua a resumir-se ao 'socialismo pluralista' (PS, CDS e PSD) e ao socialismo demagógico (PCP e BE), a versão suave do velho 'socialismo autoritário'. O 25/11 matou a política em Portugal. Ficou tudo decidido ali. Vários partidos, mas uma só ideologia: o estado socialista.

Desde cedo, o estado socialista começou a seduzir a direita para o harém do regime: o Orçamento Geral do Estado. Lugares almofadados na administração pública para tecnocratas, pareceres faustosos para escritórios de advogados e negócios faraónicos para empresários, eis o que o harém tem oferecido à direita desde 1975. E a direita vive numa condição de inferioridade moral e ideológica porque aceitou ser comprada. Várias colecções de advogados e empresários gostam de dizer que são de direita em tertúlias pós-laborais, mas, entre as 9 e as 5, adoram espreguiçar-se à sombra do estado socialista imposto pelo 25/11. A promiscuidade entre negócios e política - a marca do regime - tem a sua raiz profunda em Novembro de 1975.


Henrique Raposo

Obama e o contraste entre culturas políticas

A sucessiva nomeação de moderados, inclusive republicanos, para a equipa do Presidente-eleito, Barack Obama, confirma o que aqui tenho escrito sobre o tema - na verdade ultrapassa as minhas melhores expectativas. E assinala o início do desapontamento de certa esquerda europeia com Obama.

Estas nomeações não decorrem de meras considerações de circunstância. De certa forma, exprimem as profundas diferenças entre a cultura política anglo-americana e a continental. Reafirmo que estas diferenças são mais importantes do que as diferenças entre esquerda e direita, ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo.

Três conceitos políticos-chave, e as respectivas diferenças de percepção nas duas culturas políticas, ilustram bem o que está em causa.

Em primeiro lugar, o conceito de revolução. Na cultura política de língua inglesa, o conceito de 'revolução' não goza de grande prestígio. Prefere-se o conceito de mudanças graduais e descentralizadas, muitas vezes em direcções totalmente opostas, e não centralmente comandadas.

Edmund Burke terá dado o maior contributo para desacreditar a mitologia das revoluções. Tendo sido o líder parlamentar liberal do seu tempo, ele atacou severamente a Revolução Francesa de 1789. No continente, Burke é descrito como um reaccionário. Na tradição anglo-americana, é venerado pela direita e pela esquerda. Woodrow Wilson e John Maynard Keynes, nenhum deles de direita, falavam de Burke como o seu mestre.

A preferência pelas mudanças descentralizadas liga-se, em segundo lugar, ao conceito de ordem social descentralizada. No continente, a ideia de ordem social está em regra associada a uma organização minuciosamente comandada por uma entidade central. Na tradição anglo-americana, a ordem social é percebida como emergindo da interacção pluralista de pessoas, famílias e instituições - que tomam decisões e assumem responsabilidades por elas, sob a comum protecção da lei.

A recusa da revolução e a preferência por uma ordem livre sob a lei geram, na tradição anglo-americana, um terceiro fenómeno, altamente intrigante aos olhos continentais: o apego quase religioso a regras gerais de conduta, e a hostilidade a comandos particulares. Esta obediência espontânea a regras gerais de conduta, associada a uma rebeldia contra directrizes específicas e a uma surpreendente variedade de opiniões, hábitos e costumes, sempre captou a atenção dos melhores observadores continentais.

Acredito que reside em boa parte neste terceiro fenómeno a chave da estabilidade política - e da prosperidade - dos países de língua inglesa. A ela voltaremos na próxima semana.


João Carlos Espada

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O AMOR, A MORTE E O SEXO

“Entre trampa de vaca e palácios mirabolantes, a Índia é uma intensa viagem pelos ciclos da vida. Ora poéticos, ora crus. Um país onde, pelas fantasias, passeiam moscas...”

Vou a Jaipur por causa de um dos meus livros favoritos. Esse livro, chamado ‘Prova do Observatório’ foi escrito pelo argentino Julio Cortazar e estabelece um curioso paralelismo entre o observatório astronômico construído pelo marajá Jai Singh, em Jaipur, em 1728, e a viagem empreendida pelas enguias para desovarem, assim dando início a um novo ciclo. Trata-se de uma das mais belas alegorias que conheço para a vida, mas no meio das famílias indianas não consigo transportar-me para dentro do livro. Limito-me, por isso, a apreciar estranhas construções que me lembram pinturas de Mauritius Escher.
Depois dos sumptuosos palácios de Udaipur e de Jodhpur. Jaipur é desinteressante. Nada que se compare a Agra, no vizinho estado do Uttar Pradesh, onde chego num final de tarde que nunca mais esquecerei. Nunca mais. O exacto momento em que, ultrapassado o caos citadino, subo as escadas do hotel e os meus olhos poisam no Taj Mahal. Apaixono-me pelo templo do amor, fantasma na bruma do anoitecer. É indescritível a harmonia das formas, ângulos e arestas, o branco puro do mármore, o trabalho de ‘pietra dura’. Recortado contra o céu parece diáfano, inatingível.
“A materialização de todas as coisas puras”, escreveu o inglês Rudyard Kipling. Descrição com a qual concordo incondicionalmente ao visitar o mausoléu, deslumbrada com a sensação irreal de me passear pela história de amor entre Shah Jahan, imperador do povo Mughal no século XVII, e a sua segunda mulher, Muntaz Mahal. Desesperado com a morte de Mumtaz, ao dar à luz o 14º filho do casal, o imperador mandou construir um templo perfeito que a acolhesse pela eternidade. Vinte mil artifícios trabalharam no mármore translúcido, nos embutidos de flores traçados com pedras semipreciosas, nos minaretes e cúpulas, nos jardins erguendo o mais belo monumento construído pelo Homem que já vi.
É assim, com a sensibilidade à flor da pele, que apanho o comboio para aquela que considero uma importante etapa pessoal desta viagem. Sempre tive medo de tudo o que se relacione com morte. Não gosto de cravos por causa do cheiro que ficava nas ruas de Sarzedas depois dos cortejos fúnebres e nunca vi um morto. Até hoje. Ainda estou com as mochilas às costas, tentando evitar nas ruelas estreitas de varanasi, o lixo e as bostas de vaca, quando sou obrigada a subir um portal para deixar passar quatro homens que, em passo de corrida, transportam uma padiola com um morto. Respiro fundo. A cena é perfeitamente normal na cidade do deus Shiva e do rio da salvação. Aqui bate o coração do universo hindu e no Ganges lavam-se os pecados de toda a vida, purificam-se os mortos para a passagem do mundo físico ao espiritual.
Nada mais auspicioso para um hindu do que morrer e ser cremado no ghat (nome dado às escadarias de acesso ao rio) de Manikarnica, perto do qual me instalo, decidida a enfrentar os meus medos. Espessas colunas de fumo desprendem-se das piras fúnebres e as ruas por detrás do crematório são um amontoado labiríntico de lenha, de lojas e de templos hindus. Todos os dias ardem nas fogueiras do crematório principal da Índia mais de 250 corpos, cuja alma já partiu para outro karma, segundo a crença hindu. Assisto de longe às cerimônias. Impressionantes, mas não tanto. Talvez porque as pessoas estão embrulhadas em panos coloridos e não há choros e gritos, apenas rituais de transição.
No dia seguinte passeio de barco pela ‘mãe Ganga’. São seis da manhã, hora de um espectáculo colorido e único em que milhares de pessoas se acumulam nas escadarias praticado a Puja, cerimônia de homenagem ao nascer do Sol. Que me perdoem os hindus, mas o Ganges tem as águas mais sujas de que tenho memória. Dejectos sagrados de vaca, cinzas de mortos, carcaças de animais, resíduos industriais e, claro, um ou outro cadáver (homens santos, grávidas, pessoas mordidas por cobras, leprosos e crianças não são cremados, sendo atirados ao rio presos a pedras). Ora, é nessas águas, com mais bactérias por metro quadrado de que qualquer esgoto, que os hindus se lavam. Vejo-os a gargarejarem e sinto náuseas. Difíceis de conter, quando o barco se cruza com um cadáver azul em decomposição. Intenso.
Demasiado intenso, penso ainda a recompor-me no comboio vagaroso para Khajuraho. Nesta cidade tranqüila do Madyah Pradesh o que há para ver é o principio de um novo ciclo da vida. templos do século X, famosos pelas suas esculturas representando posições do Kama Sutra. E não só. Não reconheço do livro do amor e do sexo, a prática em que um guerreiro se compraz com o seu próprio cavalo.


‘Patricia Brito’

PRECISO DE UM HOMEM EM CASA

Eu não sou bem um homem. Homem que é homem sabe agarrar num ‘Black & Decker’ e fazer um furinho numa parede. Eu da última vez que mexi num ‘Black & Decker’ ia descobrindo petróleo. Homem que é homem sabe pegar num busca-polos e resolver um problema eléctrico. Eu cá estou para a electricidade como as cegonhas para os cabos de alta tensão. Homem que é homem vê uma torneira a pingar e vai imediatamente munir-se de uma chave inglesa. Eu vou imediatamente munir-me de umas ‘Páginas Amrelas’. Sou uma desgraça, eu sei. Estou sempre a dizer à minha mulher. “Fazia-nos muita falta um homem cá em casa”.

Esta triste incompetência para as tarefas manuais é um rude golpe na minha virilidade. O cúmulo da humilhação foi quando há três anos chamei um técnico para me vir arranjar o esquentador inteligente. Eu abria a torneira da água quente mas o esquentador não disparava. O técnico chegou, olhou e (isto custa a admitir)... mudou-lhe as pilhas. Paguei sessenta euros. Sessenta euros por trocar duas pilhas. Felizmente, arranjei um verdadeiro profissional: em vez de se rir na minha cara esperou até chegar ao carro. Desde esse dia estou firmemente convencido de que o meu esquentador é mais inteligente do que eu.

Ainda por cima, tenho um cunhado que só não construiu sozinho a casa onde vive porque os homens das obras chegaram primeiro. Ele não só consegue pendurar quadros na parede – actividade que me parece mais complexa do que escrever ‘Os Lusiadas’ numa gruta – como se entretém a pintar divisões, calafetar janelas, desentupir canos, montar candeeiros e todos esses desportos domésticos que definem – como dizê-lo de outra forma? – o bom macho lusitano. Para minha suprema vergonha, ele até fabricou, com as suas próprias mãos, todo o mobiliário do quarto dos filhos. Já os meus filhos, quando vêm ter comigo a queixarem-se de uma lâmpada fundida, eu digo-lhes para chamarem a mãe.

A chatice no meio disto é que fico com problemas de consciência – não há forma de eu não me sentir menosprezado por esta incompatibilidade estrutural entre a minha pessoa e as Chávez de fendas. Eu queria muito ter um canalizador dentro de mim e não me sentir obrigado a renovar o meu seguro de vida cada vez que tenho de trocar uma lâmpada. Hoje em dia, sempre que é preciso fazer alguma coisa no quintal, tipo cortar os ramos da figueira ou pôr de pé uma vedação, a minha mulher já nem me diz nada: chama gente (homens, portanto) ou espera pela próxima visita do meu sogro. Imagino o que eles devem pensar de mim. “Olha, olha, o intelectual de óculos de massa, só porque escreve umas coisas no jornal acha que é muito fino para pegar num machado”. Mas eu não acho. Juro que não acho. Eu queria saber manejar o machado com a habilidade dos índios que despacharam o general Custer. Eu sou com o dia em que tenha com um serrote a intimidade que tenho com um livro. Eu quero sentir a mesma alegria a podar uma oliveira que sinto a ver westerns do John Ford. Ó vil destino. Eu tenho 35 anos e não há meio de ser um homem. Nem à martelada.


‘João Miguel Tavares’

FELGUEIRAS VS. BLEARS

O uso dos dinheiros públicos para beneficio próprio de políticos em cargos para os quais foram eleitos só não será um crime na republica das bananas. Por cá, apesar de todas as demoras, Fátima Felgueiras foi condenada a três anos e três meses de prisão, com pena suspensa durante esse período, por causa de uma falha de acerto de contas relacionadas com uma viagem à Irlanda e por uso indevido de um carro da autarquia numa deslocação ao congresso do PS. Em Inglaterra, Hazel Blears, secretária de Estado para as Comunidades e o Governo Local, é acusada de usar o dinheiro dos contribuintes para aprender castelhano. O ataque dos tories ao caso e o destaque dos media ingleses quanto a esta questão levam-me a pensar que:
1) os ingleses, apesar de corruptos, sempre aplicam as libras alheias na sua formação;
2) nós não damos assim tanto valor ao dinheiro. A senhora entretanto defende-se afirmando que tudo não passou de uma explicação de três horas da língua estrangeira para poder participar numa reunião. Não deixar passar nem um “me llamo Hazel” aprendido à custa dos contribuintes é uma forma de valorizar um recurso limitado e de proteger de quem paga.


‘Carla Hilário Quevedo’

MUITO TARDE

Poucas coisas no mundo chegam ao ponto da infâmia e da boçalidade como a violência sobre outros. Sobretudo a violência entre indivíduos. É possível justificar uma guerra ou mesmo uma tentativa de libertação de um país oprimido para as maravilhas da democracia ocidental. Mas absolutamente nada justifica a violência sobre crianças, idosos, homens e mulheres. As tentativas de perceber o outro acabam mal se ouve falar da excisão feminina a UE terão sido sujeitas entre 100 a 140 milhões de mulheres, segundo dados revelados pela ONU. A violência sobre as mulheres tem sido depreciada pelos governos um pouco por todo o mundo. Mas perante as 43 mulheres assassinadas até ao momento este ano em Portugal, na sequência de casos classificados por ignorância como “passionais” e cuja terminologia condeno por incentivar à desculpa do agressor; o Governo português adoptou um conjunto de medidas ainda mais tímidas que visam proteger a vitima. Falta também educação cívica, respeito pelo próximo e alento por parte das mulheres para rejeitar situações intoleráveis sem pensar duas vezes. A paixão e o amor não se misturam com a violência nem com a morte.

‘Carla Hilário Quevedo’

INCOMPREENSÍVEL

Não percebo nada de Economia. Nem da macro nem da micro. Afirmo isto sem orgulho nem segundas intenções. Mas não é para mim um consolo quando me deparo com economistas que, resignados, explicam que a Economia não é nem pouco mais ou menos uma ciência. Como a maioria das pessoas encaro com impotência e alguma (pouca) resignação os vaivens dos preços e dos impostos. Como todos adapto-me e mudo os meus hábitos de acordo com o ritmo incontrolável impingindo pelos universos inatingíveis da crise mundial, do défice orçamental, das fiscalizações ou da falta delas, dos bancos e de outros palavrões que não me atrevo sequer a soletrar. Apesar de tudo, há factos que entendo: em Espanha, a gasolina é mais barata. Mas neste mundo enigmático ainda há coisas que me animam. Neste mini-apocalipse financeiro, a taxa Euribor continua a baixar. O preço da gasolina também. É mais fácil arranjar mesa nos restaurantes. Os vendedores nas lojas são mais simpáticos e deixar uma gorjeta mínima (ou não deixar nenhuma) já não é motivo de desprezo. A crise tem as suas vantagens. Só não me peçam para as explicar.

‘Carla Hilário Quevedo’

SINAIS EXTERIORES DE POBREZA

Ficou famoso o indicador econômico de Antonio Guterres, que uma vez disse no Parlamento que não era possível que a crise fosse assim tão grave, pois as vendas de telemoveis não paravam de subir. Pois até para esse sofisticadíssimo índice se prevê recessão. I isso não tem graça nenhuma.
De todos as previsões recessivas que vão surgindo, em catadupa, a mais impressionante é esta: mãos oito milhões de desempregados nos países da OCDE nos próximos dois anos. Oito milhões. É o equivalente a quase todos os portugueses com mais de 15 anos que, em 42 países, vão deixar de ter emprego. É o saldo liquido (diferença entre postos de trabalho criados e destruídos). É um aumento de 24% em dois anos, para um total de 42 milhões. É o custo dramático da destruição da aparência de prosperidade econômica em que vivíamos. É o fim do mito do homem-heroi do século XX: despedir oito milhões de pessoas não é um ajustamento econômico, é o fracasso da sociedade ocidental.
As previsões da OCDE são medonhas e incluem Portugal no fumo negro, prevendo para nós a mais alta taxa de desemprego desde a adesão à comunidade européia. Mas não é preciso fazer muita futurologia para ver como a crise econômica já chegou em força: as vendas de automóveis e casas caem a pique, os centros comerciais vão perdendo logistas, o malparado está a aumentar, os orçamentos das empresas cortam custos para o próximo ano, o consumo está em perda, os principais países nossos clientes estão com previsões ainda piores que as nossas.
Só depois do Natal, o período forte do consumo do ano, se medirá a extensão da crise que já existe, pois muitas empresas estão à espera deste balão de oxigênio para respirar fundo antes de arrancar o ano. A julgar pelas promoções avançadas que se vêem nas montras, este não será o pior Natal dos últimos anos, mas o melhor Natal dos próximos.
Com esta crise, não é apenas o nosso modo de vida que está ameaçado, é o nosso emprego. E nesta ameaça pode-se começar a conjugar o verbo “perder” seis vezes: eu, tu, ele, nós, vós, eles.


‘Pedro Santos Guerreiro’

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

JACK NICHOLSON

“Um dos mais aclamados e carismáticos actores da história do cinema. Um dos poucos actores consagrados que aceita fazer papeis secundários em filmes”

Nasceu em Manhattan, Nova Iorque. Abandonado pelo pai, cresceu junto dos avós, que acreditava serem os seus pais. Soube, depois da morte destes, que a sua irmã mais velha era, na verdade, a sua mãe.
Começou a sua carreira como actor trabalhando para e com Roger Corman. Estréia-se no cinema em “The Cry Baby Killer”, de 1958. Desde então foi nomeado 12 vezespara os Óscares. Já conta com três no seu currículo: dois Óscares na categoria de melhor actor, por “Voando Sobre um Ninho de Cucos” (1976) e “Melhor é Impossível” (1998) e uma estatueta dourada na categoria de melhor actor secundário pelo seu trabalho na película “Laços de Ternura” (1984).

PLANO PARA ACABAR DE VEZ COM A CULTURA

“Sem marquetingue não há idéia que vingue”

“Lutar com palavras; é luta mais vã;
Entanto lutamos; mal rompe a manhã”

‘Carlos Drummond de Andrade’


Para começar, lança-se a idéia de que é preciso ser-se culto para se ser “alguém”. Ser-se “culto” significa estar-se apto a responder aos inquéritos da “Caras” ou da “Lux”: qual foi a última exposição/peça de teatro que viu? E o último espectaculo? Que livro levaria para a ilha deserta? Qual é o seu restaurante favorito? E viagem? E filme? Mas não é só isto: também é preciso ser-se doutor. Nenhuma pessoa pode ser considerada culta sem uma licenciatura, qualquer que seja. Fernando Pessoa, por exemplo, não era uma pessoa culta: não só não tinha um curso superior, como, do ponto de vista dos “consumos culturais”, era penas um literato, coisa que no inicio do século já parecia uma limitação, e que agora é, de facto, um atestado de menoridade cultural. Porque hoje a cultura é movimento, festa, agitação. E tem de ser “sinestésica”. Uma pessoa culta tem de saber vestir, e estar, e rir, e conversar sobre a moda e a política e o ambiente e a musica e o design. Sobretudo o design, porque sem o design apropriado ninguém é entendido como culto.
Para lançar esta idéia, contacta-se uma agencia de comunicação. E desenha-se uma estratégia de marquetingue, porque sem marquetingue não há idéia que vingue – isso até o literato Pessoa já tinha descoberto. Sim, a cultura exige uma estratégia e um plano. De preferência vindos de fora; a globalização é muito bonita para tema de conversa mas, na hora da verdade, um grupo de consultores estrangeiros, que já tenha vendido festas culturais nos países que dominam o império da cultura (e do dinheiro; as duas dimensões são inseparáveis) impressiona melhor. A alternativa, mais econômica mas muito prestigiante, é encomendar um “estudo” a uma universidade, estrangeira ou, neste caso, de preferência, nacional. Dá um ar de seriedade e independência, com a vantagem, em se tratando de uma universidade portuguesa, de se captarem de imediato para a causa aquilo a que em bom português se chama “opinion makers”.
O plano, a estratégia e o estudo devem ser anunciados, explanados e demonstrados pelo menos uma vez por mês e em “Power point” – ou seja, num écran, com muitas cores e gráficos, porque a cultura contemporânea não existe sem luzes, cores, coisas a mexer. Um bom plano cultural é aquele que pretende sacudir tudo ao mesmo tempo – a palavra-chave é “interdisciplinaridade” (ou será “transdisciplinaridade”?). juntar a dança com as artes plásticas e a fotografia e o cinema e a musica e, enfim, a palavra. Um evento impactante tem de ter uma palavra. Um evento impactante tem de ter uma palavra de ordem, ou várias, mas curtas, e de preferência em inglês – porque essa é uma língua abençoadamente sintética e que facilita a exportação. E a cultura é para exportação.
A juventude é outra das características essenciais da cultura. Porque há necessidade de criar “novos públicos”, de “inovar”. De onde vem essa necessidade? Do nada – isso é que é maravilhoso: seremos capazes de, como diria Seinfeld, criar todo um programa a partir do “nada”, apenas movidos pela urgência de criar animação, vitalidade, acontecimentos, enfim, cultura. Uma cultura jovem mas de “inclusão”, democrática, que contemple aquilo a que se chama “multiplicidade dos olhares”. E que funcione como um eterno recomeço, a festa pela festa, o evento pelo evento. Que saiba misturar o gato e o sapato, o museu e a rua, a sardinha assada e o sushi. Uma cultura assim garante a tranqüilidade do povo e o orgulho pátrio: no futebol como em qualquer outra área (e o futebol também é cultura não esqueçamos), Portugal também sabe fzer grandes festivais.
Outra coisa seria presunção e perigo. Que outra coisa? Por exemplo, criar estruturas escolares sólidas para que as pessoas possam aprender a pensar e a imaginar livremente, de modo a fazerem as suas escolhas ou desenvolverem as suas capacidades. Investir em bibliotecas e arquivos. Apoiar os criadores e os seus projectos, os investigadores, a edição e divulgação de textos e autores essenciais para a formação de um pensamento critico. Manuel Maria Carrilho lembrava a semana passada (Diário de Noticias – 27-11-2008) que “uma política da língua só pode ser uma política dos matérias em que ela se concretiza”. Mas claro que as palavras deste filósofo não interessam nada – sobretudo porque ele já provou, enquanto ministro da Cultura, que não há nada mais prático do que uma boa teoria. Fez demasiado, exigiu demasiado, conseguiu demasiada visibilidade exterior para o cinema e a literatura portugueses – por isso acabou por ser enviado para Paris. O povo quer-se anestesiado – e o dinheiro que se gasta em estudos e festas não se gasta a dar-lhe lenha para atear o lume da imaginação ou do pensamento.


‘Inês Pedrosa’