sábado, 18 de abril de 2009

DIARIO DE UM DESEMPREGADO

Ele levanta-se da cama tarde. Diz que tem insónia e não consegue adormecer antes do amanhecer, quando fecha as janelas à primeira luz do sol que penetra através das persianas em raios de poeira doirada. Uns dizem que é preguiça, que não se levanta cedo porque se acomodou. Na verdade, a manhã parece-lhe insuportável porque não há nada para fazer nem de manhã, nem de tarde, nem de noite. Desde que está desempregado pratica uma gestão rigorosa do tempo livre porque o tempo livre é demasiado e não sabe como ocupá-lo.
Existe o problema dos comprimidos que lhe tiram o sono, os antidepressivos que lhe fazem companhia desde que está desempregado. Tentou livrar-se dos comprimidos, mas sem um emprego e um motivo sólido para começar o dia cedo, pisando a manhã como os que têm um emprego e as certezas de um emprego e um salário, foi-se deixando arrastar pelo horário da insónia e do despertar tardio. Que é o horário do desalento. No princípio do desemprego revoltava-se, andava de um lado para o outro de carro, fazia telefonemas a torto e a direito - sabes de alguma coisa? - bebia bicas em pastelarias com os jornais diários do dia, à cata dos anúncios, arquitectava projectos atrás de projectos, vou fazer isto, vou fazer aquilo, tive uma ideia para isto e outra para aquilo, conheces alguém que, etc., punha esquemas em papéis, hipóteses no ar e desenhava uma vida cheia de promessas e colaborações. Alguém viria a precisar dele.
Foram aparecendo uns biscates que o desencravavam. Com a passagem do tempo os biscates foram ficando escassos até desaparecerem. Com a crise, não há biscates, nem hipóteses, nem projectos. Resta de toda essa actividade um vago enunciado de mais um projecto falhado que, eventualmente, arranjaria financiamento... etc. Nem ele mesmo já acredita nestas arquitecturas. Com um meio sorriso diz que tem que manter a cabeça com alguma coisa dentro para não dar em estúpido. Na verdade, sabe que ninguém contrata um homem da idade dele. Mais de 50 anos no mercado de trabalho é o equivalente à morte. Candidata-se a várias coisas para as quais se sente qualificado e nem lhe chegam a responder.
Com a crise, candidata-se a coisas que nunca lhe passariam antes pela cabeça. Coisas abaixo do que julga ser a sua qualificação e o seu estatuto... guiar táxis? Criado de mesa? Jardineiro? Cozinheiro? A idade não perdoa.
Devem-lhe uns trocos de um trabalho antigo que não espera receber. Foi mudando de casa, vendendo as coisas boas que tinha. O carro já se foi, comprou-lhe tempo. Até aparecer alguma coisa, um emprego, um empenho, uma magia que o livre da indigência. Os amigos foram emprestando dinheiro e de cada vez emprestam menos e desesperam mais. Alguns acusam-no de se deixar ir. Deixar-se ir é a única coisa que pode fazer. O desemprego é como um rio lento e tranquilo que arrasta tudo na passagem, detritos, margens, chuvas, aluviões. Tudo o que constitui a identidade social de uma pessoa está, no mundo em que vivemos, ligado ao seu lugar no mercado de trabalho. Quem não tem trabalho é um pária, quem não tem trabalho há algum tempo é um apátrida. Quem não tem trabalho há muito tempo é um vagabundo.
Ele pensava que controlava o mercado do trabalho temporário, habituara-se a viver na precariedade e na incerteza. No pavor da conta por pagar, das cobranças dos impostos. Da chegada do correio. E durante uns tempos aguentou-se sem problemas, aparecia sempre qualquer coisa que o salvava à beira do abismo. Movimentava-se com elegância neste universo de faz de conta, não se queixava, quase consolava os amigos que lhe diziam tens de arranjar qualquer coisa, tens de arranjar qualquer coisa. Ninguém dizia o quê. Nem como. Com o tempo os amigos deixaram de acreditar e compraram-lhe o que puderam para o ajudar. No tempo em que se revoltava recusava-se a ficar em casa a olhar para as paredes e corria a cidade em pequenas tarefas mobilizadoras que não lhe rendiam um tostão e lhe davam a ilusão de uma rotina. Depois vieram os comprimidos, para acalmar, para tapar a angústia.
E agora, pacificado, resignado, deixa-se ficar a olhar para as paredes, concebe um projecto ou outro, vago, vago, e abomina a manhã e o movimento. Como não tem carro, desloca-se pouco. Bate a cidade como um estrangeiro dentro dela e volta para casa. Ninguém acredita que vá arranjar qualquer coisa e ele também deixou de acreditar. O desemprego colou-se à pele. Lembro-me de o ver trabalhar, muito. Como tantos outros, desistiu.


‘Clara Ferreira Alves’

sábado, 4 de abril de 2009

A excepção e a regra

Em 1966, o presidente De Gaulle cansou-se do que entendia ser uma insuportável tutela americana sobre a segurança e defesa europeias. A saída da estrutura militar integrada da NATO foi o modo como a França entendeu poder garantir caminho livre para a criação da sua “force de frappe” nuclear e, de certo modo, iniciar o que viria a ser a sua política de “excepção” no quadro ocidental.
A França, contudo, não saiu da Aliança Atlântica, não se dessolidarizou nunca dos seus objectivos, mas conseguiu criar, numa gestão de colaboração cujo casuísmo identificou a sua diferença, uma independência reforçada, a qual, em especial durante a Guerra Fria, não deixou de ter consequências interessantes no seu posicionamento à escala mundial.
Entretanto, o muro de Berlim caiu, a Alemanha reergueu-se, o terrorismo passou a global, a Europa alargou-se até às portas de Moscovo e os EUA, depois de mais um ciclo de unilateralismo, redefinem o modo de proteger os seus interesses no mundo. É neste contexto que a NATO discute o seu novo conceito estratégico, ao qual não será indiferente a jurisprudência de segurança resultante da sua acção “out of area”, na qual a França amplamente participa.

Para a França, ficar fora da NATO, já só significava manter um símbolo datado, face ao interesse maior de preencher em pleno um lugar de decisão. Para a NATO, a França representa a possibilidade de ter no seu seio uma voz aculturada a um registo de alguma singularidade estratégica. Na perspectiva de Portugal, o pleno regresso da França à NATO pacifica a dimensão transatlântica, que é nosso interesse reactualizar construtivamente, coloca o peso francês no comando em território português e, de certo modo, reequilibra uma relação de forças intraeuropeia que deve servir de base à densificação de uma dimensão de segurança e defesa à escala da UE, na qual estamos interessados.

Por isso, o fim da “excepção” francesa na NATO, com a retoma da regra da sua participação plena, é, para Portugal, uma excelente notícia.

Francisco Seixas da Costa