No dia 8 de Setembro de 1966 cheguei a Lisboa de comboio e recebi instruções precisas para sair na estação do Rego onde apanhei um táxi até às Amoreiras. Vinha de Vila Franca de Xira e no dia seguinte começava a trabalhar no Banco Português do Atlântico da Rua do Ouro. Logo nesse primeiro dia utilizei o 24 (Praça do Chile – Carmo), o mesmo eléctrico onde iria viajar no dia 12 de Setembro até à Praça do Chile para tirar a chapinha dos Tuberculosos, envelope essencial para arranjar emprego. Aos poucos fui conhecendo a cidade sempre através dos eléctricos. Havia o 2 para o Sporting, o 5 para o Benfica, o 16 para o Belenenses, o 18 para o Atlético e o 17 para o Oriental. O poema Luz, Restelo, Tapadinha, Alvalade regista essa realidade hoje com 44 anos de memória. Outro poema Balada da Morais Soares faz a cartografia dos carros com atrelado na Morais Soares a caminho da Escola Patrício Prazeres. O som da campainha do segundo carro não morreu ainda. Logo a seguir aos eléctricos descobri os elevadores. No de Santa Justa pagava 2 tostões. Ao lado desse elevador havia a casa do ensaio da Banda da Carris. Devo a esse pormenor o primeiro poema do meu livro Transporte Sentimental. Além das expedições futebolística anteriores não devo esquecer o estádio do Jamor e a célebre raquete do eléctrico 15 (Praça do Comércio – Estádio) Estádio onde assisti ao vivo à vitória do Celtic sobre o Milan por 2-1 em 1967 na final da Taça dos Campeões Europeus com o endiabrado Jimmy Johnstone a ganhar o definitivo cognome de Lisbon Lion. Para além do futebol havia a escola à noite. Fui aluno do Instituto Comercial mas antes estudei na Veiga Beirão e também na Patrício Prazeres.
As ruas de Lisboa em 1966 pareciam sossegadas e eram mesmo sossegadas mas as prisões estavam cheias. Aljube, Caxias, Peniche, Tarrafal. Mais tarde vim a ouvir dizer que em Cabo Verde só havia angolanos mas isso significava o primado do faz-de-conta tão caro ao ditador Salazar: para fora e depois da II Guerra Mundial já não havia presos políticos mas para dentro era outra a realidade.
Os eléctricos eram um espectáculo mas dentro desse espectáculo avultava um curioso jogo de cestos de verga com lancheiras. Sempre que um eléctrico se cruzava com outro havia uma leve paragem e as lancheiras eram trocadas com ternura. Nunca falhava.
No largo do Rato passavam o 5 e o 24 ambos a caminho do Largo do Carmo mas outros faziam tempo no resguardo: o 22 e o 23 (São Bento Circulação), o 25 e o 26 (Estrela – Gomes Freire), o 29 e o 30 (Estrela – Príncipe Real).
Nós, os passageiros, os utilizadores como se diz hoje em dia, falávamos dos eléctricos como quem fala de pessoas: – Estou à espera do 24! Já passou o 5? Aquele ali não era o 29? Daí vê-se o 22 a subir a Rua de São Bento? O 25 nunca mais passa!
Às vezes faziam essas perguntas a um cego que vendia jornais e lotaria no meio do Largo do Rato, junto ao expedidor. O homem disfarçava e mudava de assunto. Nunca se enganava nos trocos, conhecia as moedas pelo peso e pelo diâmetro. Dizia Seques e Diére em vez de Século e Diário.
Eu morava na Travessa do Barbosa num quarto alugado a um guarda-freio da Carris. Morava muito perto da estação de recolha das Amoreiras onde os eléctricos dormiam o sono dos justos. As outras estações de recolha eram Santo Amaro e Arco do Cego.
Mais tarde fui morar para a Travessa do Caldeira e passeia a apanhar o 28 (Graça – Estrela) para ir até à Rua do Ouro. Quando casei fui morar para a Travessa de São Pedro e passei a utilizar o 20 (Cais do Sodré – Gomes Freire) que me deixava na Rua Rosa Araújo, muito perto da Rua Castilho onde estava o Departamento de Estrangeiro do Banco Português do Atlântico.
O meu livro mais feliz chama-se Transporte Sentimental mas não começou bem. Um obscuro secretário-geral da Carris negou-se a apoiar a sua primeira edição, o presidente Consiglieri Pedroso não o quis contrariar e lá saiu com a chancela de uma editora modesta. Só a posterior edição da Câmara Municipal de Lisboa lhe deu algum relevo e lá está garboso e bisonho na montra da Livraria Municipal da Avenida da República.
Comecei a trabalhar no Departamento de Estrangeiro de um Banco em 1966 com 15 anos e reformei-me com 45 em 1996. Ainda a tempo de fazer outras coisas e de aprender que a nossa vida é uma viagem. Cada dia e cada passo é uma etapa naquilo a que com muita graça Woody Allen afirmava num dos seus livros: Não sei se há vida depois da morte mas tenho a certeza de que há morte depois da vida. O importante é fazer dessa morte relativa uma injustiça absoluta. E digo morte relativa porque só morre quem se perde nas emboscadas do esquecimento.
José Carmo Francisco
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