Na claridade do pátio nada se move. apenas o mármore das colunas duela com o vento. todo o solo prenuncia a queda a palavra que fenda a manhã. emigrado da sombra me entrego ao desgaste do vento. Ah o azul o azul me desampara.
'Fernando Fábio Fiorese Furtado'
Blog de opinião pessoal, critica, independente e rigorosa em termos de analise problematica das questões. Convidados a participar cidadãos com um pensamento livre e descomprometido com obrigações de seguidismo politico, social ou religioso. Aqui, neste espaço, cada um continua a ter as suas opções pessoais, de forma livre. Cada um sabe de si!!!
quinta-feira, 28 de maio de 2009
sábado, 18 de abril de 2009
DIARIO DE UM DESEMPREGADO
Ele levanta-se da cama tarde. Diz que tem insónia e não consegue adormecer antes do amanhecer, quando fecha as janelas à primeira luz do sol que penetra através das persianas em raios de poeira doirada. Uns dizem que é preguiça, que não se levanta cedo porque se acomodou. Na verdade, a manhã parece-lhe insuportável porque não há nada para fazer nem de manhã, nem de tarde, nem de noite. Desde que está desempregado pratica uma gestão rigorosa do tempo livre porque o tempo livre é demasiado e não sabe como ocupá-lo.
Existe o problema dos comprimidos que lhe tiram o sono, os antidepressivos que lhe fazem companhia desde que está desempregado. Tentou livrar-se dos comprimidos, mas sem um emprego e um motivo sólido para começar o dia cedo, pisando a manhã como os que têm um emprego e as certezas de um emprego e um salário, foi-se deixando arrastar pelo horário da insónia e do despertar tardio. Que é o horário do desalento. No princípio do desemprego revoltava-se, andava de um lado para o outro de carro, fazia telefonemas a torto e a direito - sabes de alguma coisa? - bebia bicas em pastelarias com os jornais diários do dia, à cata dos anúncios, arquitectava projectos atrás de projectos, vou fazer isto, vou fazer aquilo, tive uma ideia para isto e outra para aquilo, conheces alguém que, etc., punha esquemas em papéis, hipóteses no ar e desenhava uma vida cheia de promessas e colaborações. Alguém viria a precisar dele.
Foram aparecendo uns biscates que o desencravavam. Com a passagem do tempo os biscates foram ficando escassos até desaparecerem. Com a crise, não há biscates, nem hipóteses, nem projectos. Resta de toda essa actividade um vago enunciado de mais um projecto falhado que, eventualmente, arranjaria financiamento... etc. Nem ele mesmo já acredita nestas arquitecturas. Com um meio sorriso diz que tem que manter a cabeça com alguma coisa dentro para não dar em estúpido. Na verdade, sabe que ninguém contrata um homem da idade dele. Mais de 50 anos no mercado de trabalho é o equivalente à morte. Candidata-se a várias coisas para as quais se sente qualificado e nem lhe chegam a responder.
Com a crise, candidata-se a coisas que nunca lhe passariam antes pela cabeça. Coisas abaixo do que julga ser a sua qualificação e o seu estatuto... guiar táxis? Criado de mesa? Jardineiro? Cozinheiro? A idade não perdoa.
Devem-lhe uns trocos de um trabalho antigo que não espera receber. Foi mudando de casa, vendendo as coisas boas que tinha. O carro já se foi, comprou-lhe tempo. Até aparecer alguma coisa, um emprego, um empenho, uma magia que o livre da indigência. Os amigos foram emprestando dinheiro e de cada vez emprestam menos e desesperam mais. Alguns acusam-no de se deixar ir. Deixar-se ir é a única coisa que pode fazer. O desemprego é como um rio lento e tranquilo que arrasta tudo na passagem, detritos, margens, chuvas, aluviões. Tudo o que constitui a identidade social de uma pessoa está, no mundo em que vivemos, ligado ao seu lugar no mercado de trabalho. Quem não tem trabalho é um pária, quem não tem trabalho há algum tempo é um apátrida. Quem não tem trabalho há muito tempo é um vagabundo.
Ele pensava que controlava o mercado do trabalho temporário, habituara-se a viver na precariedade e na incerteza. No pavor da conta por pagar, das cobranças dos impostos. Da chegada do correio. E durante uns tempos aguentou-se sem problemas, aparecia sempre qualquer coisa que o salvava à beira do abismo. Movimentava-se com elegância neste universo de faz de conta, não se queixava, quase consolava os amigos que lhe diziam tens de arranjar qualquer coisa, tens de arranjar qualquer coisa. Ninguém dizia o quê. Nem como. Com o tempo os amigos deixaram de acreditar e compraram-lhe o que puderam para o ajudar. No tempo em que se revoltava recusava-se a ficar em casa a olhar para as paredes e corria a cidade em pequenas tarefas mobilizadoras que não lhe rendiam um tostão e lhe davam a ilusão de uma rotina. Depois vieram os comprimidos, para acalmar, para tapar a angústia.
E agora, pacificado, resignado, deixa-se ficar a olhar para as paredes, concebe um projecto ou outro, vago, vago, e abomina a manhã e o movimento. Como não tem carro, desloca-se pouco. Bate a cidade como um estrangeiro dentro dela e volta para casa. Ninguém acredita que vá arranjar qualquer coisa e ele também deixou de acreditar. O desemprego colou-se à pele. Lembro-me de o ver trabalhar, muito. Como tantos outros, desistiu.
‘Clara Ferreira Alves’
Existe o problema dos comprimidos que lhe tiram o sono, os antidepressivos que lhe fazem companhia desde que está desempregado. Tentou livrar-se dos comprimidos, mas sem um emprego e um motivo sólido para começar o dia cedo, pisando a manhã como os que têm um emprego e as certezas de um emprego e um salário, foi-se deixando arrastar pelo horário da insónia e do despertar tardio. Que é o horário do desalento. No princípio do desemprego revoltava-se, andava de um lado para o outro de carro, fazia telefonemas a torto e a direito - sabes de alguma coisa? - bebia bicas em pastelarias com os jornais diários do dia, à cata dos anúncios, arquitectava projectos atrás de projectos, vou fazer isto, vou fazer aquilo, tive uma ideia para isto e outra para aquilo, conheces alguém que, etc., punha esquemas em papéis, hipóteses no ar e desenhava uma vida cheia de promessas e colaborações. Alguém viria a precisar dele.
Foram aparecendo uns biscates que o desencravavam. Com a passagem do tempo os biscates foram ficando escassos até desaparecerem. Com a crise, não há biscates, nem hipóteses, nem projectos. Resta de toda essa actividade um vago enunciado de mais um projecto falhado que, eventualmente, arranjaria financiamento... etc. Nem ele mesmo já acredita nestas arquitecturas. Com um meio sorriso diz que tem que manter a cabeça com alguma coisa dentro para não dar em estúpido. Na verdade, sabe que ninguém contrata um homem da idade dele. Mais de 50 anos no mercado de trabalho é o equivalente à morte. Candidata-se a várias coisas para as quais se sente qualificado e nem lhe chegam a responder.
Com a crise, candidata-se a coisas que nunca lhe passariam antes pela cabeça. Coisas abaixo do que julga ser a sua qualificação e o seu estatuto... guiar táxis? Criado de mesa? Jardineiro? Cozinheiro? A idade não perdoa.
Devem-lhe uns trocos de um trabalho antigo que não espera receber. Foi mudando de casa, vendendo as coisas boas que tinha. O carro já se foi, comprou-lhe tempo. Até aparecer alguma coisa, um emprego, um empenho, uma magia que o livre da indigência. Os amigos foram emprestando dinheiro e de cada vez emprestam menos e desesperam mais. Alguns acusam-no de se deixar ir. Deixar-se ir é a única coisa que pode fazer. O desemprego é como um rio lento e tranquilo que arrasta tudo na passagem, detritos, margens, chuvas, aluviões. Tudo o que constitui a identidade social de uma pessoa está, no mundo em que vivemos, ligado ao seu lugar no mercado de trabalho. Quem não tem trabalho é um pária, quem não tem trabalho há algum tempo é um apátrida. Quem não tem trabalho há muito tempo é um vagabundo.
Ele pensava que controlava o mercado do trabalho temporário, habituara-se a viver na precariedade e na incerteza. No pavor da conta por pagar, das cobranças dos impostos. Da chegada do correio. E durante uns tempos aguentou-se sem problemas, aparecia sempre qualquer coisa que o salvava à beira do abismo. Movimentava-se com elegância neste universo de faz de conta, não se queixava, quase consolava os amigos que lhe diziam tens de arranjar qualquer coisa, tens de arranjar qualquer coisa. Ninguém dizia o quê. Nem como. Com o tempo os amigos deixaram de acreditar e compraram-lhe o que puderam para o ajudar. No tempo em que se revoltava recusava-se a ficar em casa a olhar para as paredes e corria a cidade em pequenas tarefas mobilizadoras que não lhe rendiam um tostão e lhe davam a ilusão de uma rotina. Depois vieram os comprimidos, para acalmar, para tapar a angústia.
E agora, pacificado, resignado, deixa-se ficar a olhar para as paredes, concebe um projecto ou outro, vago, vago, e abomina a manhã e o movimento. Como não tem carro, desloca-se pouco. Bate a cidade como um estrangeiro dentro dela e volta para casa. Ninguém acredita que vá arranjar qualquer coisa e ele também deixou de acreditar. O desemprego colou-se à pele. Lembro-me de o ver trabalhar, muito. Como tantos outros, desistiu.
‘Clara Ferreira Alves’
sábado, 4 de abril de 2009
A excepção e a regra
Em 1966, o presidente De Gaulle cansou-se do que entendia ser uma insuportável tutela americana sobre a segurança e defesa europeias. A saída da estrutura militar integrada da NATO foi o modo como a França entendeu poder garantir caminho livre para a criação da sua “force de frappe” nuclear e, de certo modo, iniciar o que viria a ser a sua política de “excepção” no quadro ocidental.
A França, contudo, não saiu da Aliança Atlântica, não se dessolidarizou nunca dos seus objectivos, mas conseguiu criar, numa gestão de colaboração cujo casuísmo identificou a sua diferença, uma independência reforçada, a qual, em especial durante a Guerra Fria, não deixou de ter consequências interessantes no seu posicionamento à escala mundial.
Entretanto, o muro de Berlim caiu, a Alemanha reergueu-se, o terrorismo passou a global, a Europa alargou-se até às portas de Moscovo e os EUA, depois de mais um ciclo de unilateralismo, redefinem o modo de proteger os seus interesses no mundo. É neste contexto que a NATO discute o seu novo conceito estratégico, ao qual não será indiferente a jurisprudência de segurança resultante da sua acção “out of area”, na qual a França amplamente participa.
Para a França, ficar fora da NATO, já só significava manter um símbolo datado, face ao interesse maior de preencher em pleno um lugar de decisão. Para a NATO, a França representa a possibilidade de ter no seu seio uma voz aculturada a um registo de alguma singularidade estratégica. Na perspectiva de Portugal, o pleno regresso da França à NATO pacifica a dimensão transatlântica, que é nosso interesse reactualizar construtivamente, coloca o peso francês no comando em território português e, de certo modo, reequilibra uma relação de forças intraeuropeia que deve servir de base à densificação de uma dimensão de segurança e defesa à escala da UE, na qual estamos interessados.
Por isso, o fim da “excepção” francesa na NATO, com a retoma da regra da sua participação plena, é, para Portugal, uma excelente notícia.
Francisco Seixas da Costa
A França, contudo, não saiu da Aliança Atlântica, não se dessolidarizou nunca dos seus objectivos, mas conseguiu criar, numa gestão de colaboração cujo casuísmo identificou a sua diferença, uma independência reforçada, a qual, em especial durante a Guerra Fria, não deixou de ter consequências interessantes no seu posicionamento à escala mundial.
Entretanto, o muro de Berlim caiu, a Alemanha reergueu-se, o terrorismo passou a global, a Europa alargou-se até às portas de Moscovo e os EUA, depois de mais um ciclo de unilateralismo, redefinem o modo de proteger os seus interesses no mundo. É neste contexto que a NATO discute o seu novo conceito estratégico, ao qual não será indiferente a jurisprudência de segurança resultante da sua acção “out of area”, na qual a França amplamente participa.
Para a França, ficar fora da NATO, já só significava manter um símbolo datado, face ao interesse maior de preencher em pleno um lugar de decisão. Para a NATO, a França representa a possibilidade de ter no seu seio uma voz aculturada a um registo de alguma singularidade estratégica. Na perspectiva de Portugal, o pleno regresso da França à NATO pacifica a dimensão transatlântica, que é nosso interesse reactualizar construtivamente, coloca o peso francês no comando em território português e, de certo modo, reequilibra uma relação de forças intraeuropeia que deve servir de base à densificação de uma dimensão de segurança e defesa à escala da UE, na qual estamos interessados.
Por isso, o fim da “excepção” francesa na NATO, com a retoma da regra da sua participação plena, é, para Portugal, uma excelente notícia.
Francisco Seixas da Costa
quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
ETERNIDADE
Falamos ao tempo sobre a eternidade e nos dizemos satisfeitos com o restante da noite. A efemeridade dos discursos.
‘Pedro Du Bois’
‘Pedro Du Bois’
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
O 'DIÁLOGO' IMPOSSÍVEL
1. A Plataforma Sindical dos professores exagera quando não aprecia devidamente o recuo e a humildade com que a ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, soube emendar a falta de tacto político que a certa altura lhe guiou os passos na introdução da avaliação aos professores. Uma coisa é simplificar processos, reconhecer a existência de problemas na relação avaliador-avaliado, mostrar abertura para dialogar; outra coisa, diferente, seria abdicar completamente de um projecto importante para a melhoria do ensino em Portugal e consequente requalificação do ambiente escolar.
Por muitos erros que tenha cometido - e cometeu alguns - a ministra tem razão no essencial, e a verdade é que começa a ser evidente para a opinião pública que há uma parte significativa dos professores que não quer qualquer avaliação. Essa parte da classe protesta o contrário mas, no fundo, claramente pretende o regresso ao passado de uma escola onde os professores bons e maus conviviam como se fossem frutos da mesma árvore.
Não são.
E, pelo meio, os sindicatos, com a Fenprof à cabeça, mais do que a paz nas escolas, para descanso dos pais e devida classificação dos alunos, apostam num braço-de-ferro político com o Governo.
Há um limite para tudo. Nesta questão, depois dos desenvolvimentos das últimas semanas, nomeadamente após a confissão de humildade da ministra, chegou o momento de dizer que o Governo não pode nem deve recuar mais. Os sindicatos e as corporações já governaram Portugal durante décadas. O resultado está à vista - e obviamente não apenas nas escolas. Desse "diálogo" já houve que chegue.
2. Um governo democrático, legítimo, ainda para mais com maioria absoluta, deve lutar pelas suas convicções, ver para além das dificuldades do presente.
É certo que, num primeiro momento, o ministério avaliou mal a carga de trabalho que estava a colocar sobre os docentes nesta fase. Um processo destes deve ser implementado por fases e sobretudo analisando bem a qualidade média da população a que se destina. Essa avaliação falhou.
Agora, em sentido inverso, falha a percepção que os professores têm do seu lugar na sociedade.
Uma escola não se faz para os professores, como um tribunal não existe para os juízes e advogados ou um jornal para os jornalistas. Uma escola funciona para servir uma comunidade e, sobretudo, para formar gente melhor e mais qualificada. É neste âmbito que os professores devem ver a sua acção e perceber a missão do Estado.
A proposta da auto-avaliação, assente na assiduidade, feita agora pelos sindicatos para "fechar" este ano, é obviamente inaceitável. Quem está de fora e de boa-fé entende que a solução a encontrar não pode ferir a face de qualquer das duas partes. A dos professores, fruto da sua indignação e protesto, acabou por ser garantida. Mas esta obstinação dos sindicatos fere a legitimidade do Governo e a convicção da ministra. Mário Nogueira trai-se quando diz que Sócrates "se quer guerra, vai tê- -la". Para o professor sindicalista da CGTP o objectivo é fazer capitular o Governo. No dia em que os professores, de uma maneira geral, assumirem este objectivo perderão a simpatia que a determinada altura ganharam com a seu indignação. Vamos a ver se o compreendem a tempo.
O PSD ainda não sabe o que fazer na questão do Estatuto dos Açores (vota com Sócrates ou por Cavaco?...) mas já sabe como reparar a mais recente e notória "balda" dos seus deputados: vai apresentar um projecto de lei a propor a suspensão da avaliação aos professores ("defendendo naturalmente sempre a avaliação", no dizer de Paulo Rangel)! Uma vergonha tapa-se com a demagogia mais básica. E assim vai a política à portuguesa.
'João Marcelino'
Por muitos erros que tenha cometido - e cometeu alguns - a ministra tem razão no essencial, e a verdade é que começa a ser evidente para a opinião pública que há uma parte significativa dos professores que não quer qualquer avaliação. Essa parte da classe protesta o contrário mas, no fundo, claramente pretende o regresso ao passado de uma escola onde os professores bons e maus conviviam como se fossem frutos da mesma árvore.
Não são.
E, pelo meio, os sindicatos, com a Fenprof à cabeça, mais do que a paz nas escolas, para descanso dos pais e devida classificação dos alunos, apostam num braço-de-ferro político com o Governo.
Há um limite para tudo. Nesta questão, depois dos desenvolvimentos das últimas semanas, nomeadamente após a confissão de humildade da ministra, chegou o momento de dizer que o Governo não pode nem deve recuar mais. Os sindicatos e as corporações já governaram Portugal durante décadas. O resultado está à vista - e obviamente não apenas nas escolas. Desse "diálogo" já houve que chegue.
2. Um governo democrático, legítimo, ainda para mais com maioria absoluta, deve lutar pelas suas convicções, ver para além das dificuldades do presente.
É certo que, num primeiro momento, o ministério avaliou mal a carga de trabalho que estava a colocar sobre os docentes nesta fase. Um processo destes deve ser implementado por fases e sobretudo analisando bem a qualidade média da população a que se destina. Essa avaliação falhou.
Agora, em sentido inverso, falha a percepção que os professores têm do seu lugar na sociedade.
Uma escola não se faz para os professores, como um tribunal não existe para os juízes e advogados ou um jornal para os jornalistas. Uma escola funciona para servir uma comunidade e, sobretudo, para formar gente melhor e mais qualificada. É neste âmbito que os professores devem ver a sua acção e perceber a missão do Estado.
A proposta da auto-avaliação, assente na assiduidade, feita agora pelos sindicatos para "fechar" este ano, é obviamente inaceitável. Quem está de fora e de boa-fé entende que a solução a encontrar não pode ferir a face de qualquer das duas partes. A dos professores, fruto da sua indignação e protesto, acabou por ser garantida. Mas esta obstinação dos sindicatos fere a legitimidade do Governo e a convicção da ministra. Mário Nogueira trai-se quando diz que Sócrates "se quer guerra, vai tê- -la". Para o professor sindicalista da CGTP o objectivo é fazer capitular o Governo. No dia em que os professores, de uma maneira geral, assumirem este objectivo perderão a simpatia que a determinada altura ganharam com a seu indignação. Vamos a ver se o compreendem a tempo.
O PSD ainda não sabe o que fazer na questão do Estatuto dos Açores (vota com Sócrates ou por Cavaco?...) mas já sabe como reparar a mais recente e notória "balda" dos seus deputados: vai apresentar um projecto de lei a propor a suspensão da avaliação aos professores ("defendendo naturalmente sempre a avaliação", no dizer de Paulo Rangel)! Uma vergonha tapa-se com a demagogia mais básica. E assim vai a política à portuguesa.
'João Marcelino'
O HOMEM QUE DECRETOU O FIM DA CÓLERA
Robert Mugabe disse esta semana: "Estou feliz por ter acabado com a cólera." Ao mesmo tempo, a ONU fez outro balanço: a cólera continua, já fez quase 800 mortos e 16 mil pessoas estão na lista de espera. As duas declarações são produto de duas concepções filosóficas diferentes. Há os homens de pouca fé, demasiado agarrados à ditadura dos factos - infelizmente a mais alta instância internacional está cheia desses cínicos. E, depois, há os visionários que acreditam que o fim da cólera é quando o homem quiser. Mugabe é um desses.
A direcção de um país dá a certos políticos o exercício de um poder que os aparenta a deuses: o decreto. Nos anos 60, Salazar aboliu a prostituição. Os homens de pouca fé de então também sorriram, a pretexto da suposta ineficácia da medida. Mas, na verdade, Salazar acabou com a prostituição: tendo decretado que as prostitutas acabaram, elas acabaram. Talvez tenha continuado a haver mulheres nas esquinas do Martim Moniz, que subiam aos quartos das pensões manhosas com homens desconhecidos, talvez tivessem relações sexuais a troco de uma nota de 50 escudos, talvez, mas o facto era inquestionável: as prostitutas tinham deixado de existir. Como prova, havia o tal decreto.
Mais próximo de Mugabe, outro homem de vontade incomensurável: o Imperador Jean- -Bedel Bokassa, da República Centro Africana, também adepto do decreto como arma de construção massiva de ilusões. Um dia, em 1976, ele decretou: "Está abolida a burguesia." E a verdade é que da burguesia centro-africana nunca mais ninguém ouviu falar. Essa é que é essa. O mesmo acontecerá provavelmente com a cólera zimbabwiana. Um decreto é uma medida de fundo. Deixem o Mugabe continuar a decretar e poderemos estar certos de que acabará com a cólera zimbabwiana. E também com os zimbabwianos, aliás.
Como estão lembrados, na Cimeira Euro-Africana de Lisboa, há um ano, a maioria dos países africanos opuseram-se a sanções a Mugabe. Ele fazia mal aos seus, é certo, mas aquilo era um problema interno. A questão actual é que o jeito tão dele de tratar os seus conterrâneos exporta o problema. As regiões fronteiras na África do Sul e em Moçambique foram declaradas zonas de calamidade.
E a cólera na África do Sul e em Moçambique é um problema muito mais grave do que no Zimbabwe: os decretos de Mugabe não têm efeito além-fronteiras. Ele bem pode decretar: "A partir desta data fica abolida a cólera na região de Manica", mas isso não surte efeito naquela região moçambicana. A poção mágica dos visionários geralmente só vai onde chega o bastão dos seus polícias.
A solução não está em combater Mugabe mas em adoptar-lhe a táctica: o que os dirigentes africanos deviam fazer era decretar. O fim de Mugabe, claro.
'Ferreira Fernandes'
A direcção de um país dá a certos políticos o exercício de um poder que os aparenta a deuses: o decreto. Nos anos 60, Salazar aboliu a prostituição. Os homens de pouca fé de então também sorriram, a pretexto da suposta ineficácia da medida. Mas, na verdade, Salazar acabou com a prostituição: tendo decretado que as prostitutas acabaram, elas acabaram. Talvez tenha continuado a haver mulheres nas esquinas do Martim Moniz, que subiam aos quartos das pensões manhosas com homens desconhecidos, talvez tivessem relações sexuais a troco de uma nota de 50 escudos, talvez, mas o facto era inquestionável: as prostitutas tinham deixado de existir. Como prova, havia o tal decreto.
Mais próximo de Mugabe, outro homem de vontade incomensurável: o Imperador Jean- -Bedel Bokassa, da República Centro Africana, também adepto do decreto como arma de construção massiva de ilusões. Um dia, em 1976, ele decretou: "Está abolida a burguesia." E a verdade é que da burguesia centro-africana nunca mais ninguém ouviu falar. Essa é que é essa. O mesmo acontecerá provavelmente com a cólera zimbabwiana. Um decreto é uma medida de fundo. Deixem o Mugabe continuar a decretar e poderemos estar certos de que acabará com a cólera zimbabwiana. E também com os zimbabwianos, aliás.
Como estão lembrados, na Cimeira Euro-Africana de Lisboa, há um ano, a maioria dos países africanos opuseram-se a sanções a Mugabe. Ele fazia mal aos seus, é certo, mas aquilo era um problema interno. A questão actual é que o jeito tão dele de tratar os seus conterrâneos exporta o problema. As regiões fronteiras na África do Sul e em Moçambique foram declaradas zonas de calamidade.
E a cólera na África do Sul e em Moçambique é um problema muito mais grave do que no Zimbabwe: os decretos de Mugabe não têm efeito além-fronteiras. Ele bem pode decretar: "A partir desta data fica abolida a cólera na região de Manica", mas isso não surte efeito naquela região moçambicana. A poção mágica dos visionários geralmente só vai onde chega o bastão dos seus polícias.
A solução não está em combater Mugabe mas em adoptar-lhe a táctica: o que os dirigentes africanos deviam fazer era decretar. O fim de Mugabe, claro.
'Ferreira Fernandes'
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
O Nobel da literatura que os soviéticos tentaram evitar
Há 50 anos, em plena Guerra-fria, a Academia Sueca atribuía o Nobel da Literatura a Boris Pasternak por causa de um livro, uma história de amor entre um médico poeta e uma filha da aristocracia com a Revolução de Outubro como triste pano de fundo. Dr. Jivago tornou-se um dos romances mais populares do séc. XX mas a União Soviética deixou o autor morrer sem colher os louros.
Era uma vez outro tempo. Há meio século, numa era em que o mundo se dividia em dois e a literatura tinha tanta importância que os governos se sentiam ameaçados pelos escritores. Num gesto que, sem deixar de ser político, tinha a sua justificação literária, a Academia Sueca entregava o Nobel da Literatura a Boris Leonodovich Pasternak, poeta popularíssimo entre os russos que, em 1957, tinha conseguido contrabandear para o Ocidente um fresco desencantado sobre a União Soviética, com a Revolução de Outubro como pano de fundo.
O livro vinha impregnado da aura romântica das obras que conseguem ver a luz do dia apesar de todas as vicissitudes. Escrito na Rússia ao longo de quase quatro décadas é, ao mesmo tempo, um manifesto de amor à arte como fim em si mesmo, uma história de amor grandiosa, um épico histórico sobre a União Soviética que se ergue sobre os escombros dourados da Rússia dos czares e uma obra súmula das preocupações do seu autor.
Pasternak, a quem a política e os grandes movimentos sociais interessavam menos do que a arte em si, o mundo não se moldava pelo homem e as suas acções; influenciado essencialmente por correntes de amor, fé e destino, o mundo tinha pouco de construção e mais de consequência das vidas de cada indivíduo. Como o amor entre o Dr. Jivago e Lara, belo e trágico, quase sempre adiado, ao sabor dos destinos que se entrechocam e cujo idealismo sucumbe diante dos horrores que vão cometendo os exércitos Vermelho e Branco.
A existência do Dr. Jivago tem muito a ver com o destino escolhido pelo escritor. Nascido numa família de artistas judeus da cosmopolita Moscovo do final do século XX, filho do pintor Leonid Pasternak e da pianista Raitza Kaufman, Boris Pasternak pertencia a uma estirpe desprezada pela Revolução de Outubro.
Tendo crescido entre alguns dos maiores vultos da cultura da viragem do século - como Rainer Maria Rilke, visita lá de casa, de quem depois se tornaria grande admirador e tradutor - e apesar da maior parte dos seus familiares ter optado pelo exílio depois do triunfo Vermelho em 1917, o escritor preferiu ficar.
Por ter tomado essa decisão, por essa curiosidade intelectual em relação à experiência bolchevique primeiro e depois por temer que nunca mais o deixassem regressar, viu os seus pais pela última vez em 1922, quando recebeu autorização para os visitar em Berlim.|
Contrabandeado desde Moscovo por um jovem italiano desencantado com a sua experiência soviética, Sergio D'Angelo; editado em Itália pela primeira vez numa pequena editora de um playboy comunista a que os acontecimentos na Hungria tinham abalado a fé na União Soviética, Giangiacomo Feltrinell; o Dr. Jivago só viu a luz do dia e teve este impacto e de forma tão rápida pela capacidade do editor em resistir às pressões e visão de marketing.
Ao saber da notícia do Nobel, Pasternak enviou um telegrama para Estocolmo: "Extremamente agradecido, comovido, orgulhoso, surpreendido, atónito". Quatro dias depois, pressionado pelas autoridades soviéticas, recusaria o prémio: "Considerando o significado atribuído a este prémio na sociedade a que pertenço, tenho de o recusar. Por favor, não se ofendam com a minha rejeição voluntária".
'António Rodrigues'
Era uma vez outro tempo. Há meio século, numa era em que o mundo se dividia em dois e a literatura tinha tanta importância que os governos se sentiam ameaçados pelos escritores. Num gesto que, sem deixar de ser político, tinha a sua justificação literária, a Academia Sueca entregava o Nobel da Literatura a Boris Leonodovich Pasternak, poeta popularíssimo entre os russos que, em 1957, tinha conseguido contrabandear para o Ocidente um fresco desencantado sobre a União Soviética, com a Revolução de Outubro como pano de fundo.
O livro vinha impregnado da aura romântica das obras que conseguem ver a luz do dia apesar de todas as vicissitudes. Escrito na Rússia ao longo de quase quatro décadas é, ao mesmo tempo, um manifesto de amor à arte como fim em si mesmo, uma história de amor grandiosa, um épico histórico sobre a União Soviética que se ergue sobre os escombros dourados da Rússia dos czares e uma obra súmula das preocupações do seu autor.
Pasternak, a quem a política e os grandes movimentos sociais interessavam menos do que a arte em si, o mundo não se moldava pelo homem e as suas acções; influenciado essencialmente por correntes de amor, fé e destino, o mundo tinha pouco de construção e mais de consequência das vidas de cada indivíduo. Como o amor entre o Dr. Jivago e Lara, belo e trágico, quase sempre adiado, ao sabor dos destinos que se entrechocam e cujo idealismo sucumbe diante dos horrores que vão cometendo os exércitos Vermelho e Branco.
A existência do Dr. Jivago tem muito a ver com o destino escolhido pelo escritor. Nascido numa família de artistas judeus da cosmopolita Moscovo do final do século XX, filho do pintor Leonid Pasternak e da pianista Raitza Kaufman, Boris Pasternak pertencia a uma estirpe desprezada pela Revolução de Outubro.
Tendo crescido entre alguns dos maiores vultos da cultura da viragem do século - como Rainer Maria Rilke, visita lá de casa, de quem depois se tornaria grande admirador e tradutor - e apesar da maior parte dos seus familiares ter optado pelo exílio depois do triunfo Vermelho em 1917, o escritor preferiu ficar.
Por ter tomado essa decisão, por essa curiosidade intelectual em relação à experiência bolchevique primeiro e depois por temer que nunca mais o deixassem regressar, viu os seus pais pela última vez em 1922, quando recebeu autorização para os visitar em Berlim.|
Contrabandeado desde Moscovo por um jovem italiano desencantado com a sua experiência soviética, Sergio D'Angelo; editado em Itália pela primeira vez numa pequena editora de um playboy comunista a que os acontecimentos na Hungria tinham abalado a fé na União Soviética, Giangiacomo Feltrinell; o Dr. Jivago só viu a luz do dia e teve este impacto e de forma tão rápida pela capacidade do editor em resistir às pressões e visão de marketing.
Ao saber da notícia do Nobel, Pasternak enviou um telegrama para Estocolmo: "Extremamente agradecido, comovido, orgulhoso, surpreendido, atónito". Quatro dias depois, pressionado pelas autoridades soviéticas, recusaria o prémio: "Considerando o significado atribuído a este prémio na sociedade a que pertenço, tenho de o recusar. Por favor, não se ofendam com a minha rejeição voluntária".
'António Rodrigues'
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