Era uma vez um jovem militar do quadro permanente. Tinha tido, em tempos, esta ideia de se tornar oficial e até à data não se tinha desenvencilhado mal. A Academia tinha-lhe mostrado outros horizontes, dado outras referências. Melhor ou pior “Arrumou-lhe” a cabeça de outra maneira. Transpirou muito e fez novas amizades. Conheceu a camaradagem. Aprendeu novas técnicas e, de repente, encontrou-se só, a pôr em prática a bagagem acumulada. Estava feito um profissional das armas. Tinha uma missão a cumprir! Não se dava ainda conta de que era um elo importante nessa missão, mas tinha uma ideia algo consistente de que esta não era propriamente equiparável àquilo que os seus amigos do liceu hoje em dia faziam na vida. Tinha algo de … transcendente. É isso, transcendente.
O nosso amigo habitava na sua unidade, mas aspirava a mudar a sua situação, isto é, gostaria de legalmente poder passar a dar nome a descendentes seus. Ambição perfeitamente plausível no campo humano e social, mas mais complicada de pôr em prática. No meio destas “crises existenciais” próprias da idade e do momento, sentia-se no entanto cada vez mais incomodado com o que de tempos a tempos ia ouvindo sobre a sua condição militar, que ele apesar de tudo muito prezava. Era o jornal “A” que zurzia os militares por causa do orçamento; o locutor da rádio “X” que vociferava que a vida estava cara, não havia hospitais nem estradas e os militares a gastarem dinheiro, etc., foi o facto de, no outro dia, quando viajava de autocarro, ter ouvido cochichar que os militares isto e aquilo, de tal modo que ele até foi no dia seguinte a correr ter com o homem dos serviços sociais perguntar se era verdade (não era); a maneira como no outro dia o tinham olhado quando tinha entrado fardado num café, como se de um marciano se tratasse; mais a prima da outra banda que lhe pedia para lhe comprar o produto XPTY, no “casão”, que era seguramente muito mais barato que cá fora, e a gasolina, meu Deus, a gasolina, ainda havia cidadãos que pensam que os militares têm a gasolina mais barata!
Estava o nosso jovem nestas cogitações, pensando quer certamente havia algo de errado pelo meio, quando apareceu a D. Sabedoria, personagem de elevada cultura e gabarito e lhe disse:
- “Meu bom amigo: coração ao alto! Pois não te disseram que a vida tinha destas coisas? Não te falaram da servidão militar juntamente com a nobreza da profissão? Pois toma a incompreensão popular que por vezes existe, como uma das servidões. Sempre assim foi, dificilmente deixará de o ser (vê a questão dessa maneira: as FAs são como um seguro de vida. Toda a gente o deve ter, mas quem gosta de o pagar? É um seguro caro que pagamos e ficamos satisfeitos quando o seguro não teve de ser utilizado). Há muitas razões para que situações destas existam. A maior delas é o desconhecimento. Vou fazer uma comparação para ilustrar o meu pensamento.
Como sabes a Força Aérea já teve a seu cargo uma Brigada de Pára-quedistas Ligeira praticamente completa e operacional, que foi uma das melhores unidades das FAs portuguesas. O orçamento para 1983 do Corpo de Tropas Pára-quedistas foi de 1.300.000 contos. Ora os pára-quedistas são uma tropa de elite, cara, que salta de avião, desloca-se em viaturas, veste, calça, come, dorme e treina, utilizando ainda uma panóplia muito variada de armamento. Tinham,na altura, um total de cerca de 3100 homens (320 civis).Pois bem, só o subsídio de almoço de uma empresa pública custou mais, no mesmo ano, ao erário público do que a Brigada de Pára-quedistas! Estás a abanar a cabeça, não acreditas? Então repara:
A dita empresa(a TAP) empregava cerca de 10000 trabalhadores em Portugal. O subsídio de almoço era, na altura, de 350$00. Atendendo a que um ano de trabalho tem 11 meses a 25 dias cada, se te quiseres dar ao trabalho de fazer contas, concluirás que só em “alimentação” a empresa gasta 962.500.000$00. Acrescentando a este valor o resultante de idêntico subsídio aos trabalhadores no estrangeiro (em média 1200$00/dia/pessoa), sendo estes cerca de 2000, obtém-se um total de 1.622.000$00, é superior a 1300 000$00!
Já acreditas?
Mas isto nem chega a ser a ponta do iceberg. Os exemplos são muitos, são públicos e revestem-se das mais variadas formas.
Uma grande parte de grupos profissionais, pelo simples facto de o serem, ficam habilitados a usufruir das mais variadas regalias: uns andam mais barato de avião, comboio ou autocarro; outros têm juros ou seguros bonificados, etc.
Regiões existem no país que também por si só conseguem beneficiar os seus habitantes, por exemplo, gasolina ou electricidade mais barata. Os contratos colectivos de trabalho concedem os mais variados benefícios: creches, subsídios de refeição, de aleitamento, casamento, funeral, horas extraordinárias, etc., etc. Grande parte dos funcionários do Estado dispõe de um complicado esquema de emolumentos, que permitem aumentar substancialmente os vencimentos base, para já não falar nas condições especiais, ou no usufruto de bens por parte de grupos seleccionados de eleitos que ocupam algumas posições chave na “sociedade”.
O nosso militar que ouvia atentamente, já de olho um pouco esbugalhado, engoliu duas vezes em seco e balbuciou:
- “Mas então se há tudo isto, porque é que só falam dos militares?”
A D. Sabedoria sorriu e disse:
- “Razões que a razão bem conhece mas que a conveniência esquece. Posso adiantar-te algumas: é fácil e prático por as culpas nos militares. Está na moda e faz jeito arranjar um bode expiatório; má fé, não é segredo para ninguém que a instituição militar não colhe simpatias por parte de alguns indivíduos, grupos e organizações; ignorância e ingenuidade de pessoas e grupos; falta de educação cívica a nível da escola e da família; falta de sensibilidade para os problemas de defesa nacional.
Mas olha, a mim o que me preocupa mais não é o facto em si mas antes as consequências globais do actual estado de coisas. Tais factos estão a gerar assimetrias e injustiças cada vez mais complexas em toda a sociedade, que fica assim enrredada num novelo cada vez mais difícil de desembaraçar. Os alicerces são falsos …”
O nosso homem que recuperava da incredulidade animou-se, colocou-se instintivamente numa posição parecida à de sentido e soltou:
- “Mas então ninguém denuncia uma coisa destas? Como é que o país aguenta?”
- “Acalma-te, retorquiu a D. Sabedoria em tom maternal. O País não se aguenta, endivida-se. Quanto ao denunciar é quase impossível. Sabes, o Hara-Quiri é uma prática que está confinada a alguns grupos de orientais. Nunca fez sucesso no ocidente. O público em geral não denuncia a situação por desconhecedor, os partidos para não perderem votos, os sindicatos para manterem e se possível melhorarem as “conquistas”, “as entidades competentes” para não destabilizarem… e quase todos enfim, porque têm de um modo geral aproveitado com o sistema. Já me esquecia, os órgãos de informação falam por vezes nisto, mas como cada um diz de sua justiça, conseguem baralhar a audiência fiando tudo na mesma”.
O nosso militar coçava agora a cabeça tentando pôr as ideias em claro:
- “Mas então não há nada a fazer, não há esperança?”
- “Olha amigo, ele haver há e muito, assim apareçam homens e condições para o fazer. Até lá,, não te apoquentes com o que dizem da gasolina. Conserva os teus ideais e vai em frente”.
E foi-se.
João José Brandão Ferreira
TCor Pilav (Ref)
PS. Este texto foi escrito em 1983. Pelos vistos ainda não houve “homens e condições” para fazer algo. Ignoro se o jovem ,apesar de tudo, se casou.
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