Aproximamo-nos do fim da linha, da hora da verdade. Trinta e mais anos a viver sem produzir riqueza e a endividarmo-nos por conta da riqueza que um dia haveremos de produzir, acabaram finalmente por nos colocar em frente do espelho para nos encararmos a nós próprios. Escrevo depois de ter perdido meia hora de trabalho bloqueado por uma qualquer manifestação em S. Bento - não sei se dos professores ainda em luta da abolição dos últimos resquícios da fracassada tentativa governamental de os pôr a ganhar de acordo com o mérito e a produção, ou se de trabalhadores de outro sector que terão lido as tarjas colocadas pela CGTP no Marquês de Pombal: "Exigimos aumento de salários e pensões".
Pois, exigimos... É o que de melhor soubemos fazer desde o 25 de Abril: exigir. Com o país falido, os sindicatos exigem aumentos de salários e pensões e os geniais gestores públicos que conseguem a proeza de obter "resultados" administrando monopólios exigem também que ninguém toque nos seus pornográficos prémios de gestão. Uns e outros vivem tranquilos à sombra das exigências e daquilo a que chamam direitos adquiridos ou "contratualizados" - o que é a mesma coisa, em linguagem nova-rica. E quem pagará tanta exigência? Oh, claro, a srª Merkel, culpada de dirigir um país que tem de honrar o título de "locomotiva europeia", que se reconstruiu das cinzas há sessenta anos pelo seu esforço e mérito e que, egoísta como é, não quer partilhar com os "PIGS" a factura do seu desgoverno. A 'insensível' srª Merkel, ao que nos contam, está mais preocupada com a sua opinião pública e a eleição regional da Renânia-Vestfália (da qual depende a sobrevivência do seu governo de coligação) do que com a missão que a 'Europa' atribuiu à Alemanha de a socorrer em qualquer situação de necessidade. Para já, a 'Europa' exige à srª Merkel e à Alemanha que assuma um quinto da factura de 135.000 milhões de euros necessários para acorrer à Grécia, depois de esta ter passado vinte anos a desbaratar ajudas europeias (de que foi das mais beneficiadas), a acumular défices para, entre outras coisas, pagar reformas aos 50 anos de idade, e, no fim falsificar as contas públicas e esconder dos seus parceiros do euro o descalabro financeiro em que vivia. Enquanto os alemães pagavam o custo da sua reunificação e o grosso das despesas da tal 'Europa'. Agora a Grécia, depois Portugal, a seguir a Espanha, talvez também a Irlanda e a Itália. Claro que, se a Alemanha não se comover, adeus euro, talvez mesmo adeus União Europeia. Mas ponham-se na pele de um alemão, ponham-se na pele dos nossos emigrantes que lá trabalham no duro, e digam lá se iam a correr, entusiasmados, salvar a 'Europa'.
E as agências de notação financeira, ah, esses filhos-da-mãe da Standard and Poor's, da Fitch, da Moodys, a alimentarem a especulação contra nós e os gregos? Esses malandros que, vejam lá, olham para o nosso histórico, vêem que passámos a última década inteira a crescer menos de 1% ao ano, enquanto a despesa do Estado crescia cinco vezes mais, e permitem-se duvidar da nossa capacidade de domesticar o monstro nos anos próximos! Sim, porque nós, se nos derem oportunidade, vamos a correr comprar títulos da dívida pública portuguesa, tamanha é a fé que temos na nossa capacidade de gastar apenas o que produzimos! Claro que eles são uns 'incendiários', mas só porque encontram terreno preparado para arder.
Porque será que não acreditamos naquilo que acusamos os outros de não acreditarem também? Eu explico, pela parte que me toca. Com alguns exemplos concretos - nem sequer os mais significativos, apenas representativos.
Primeiro exemplo: viram aquela imagem do dr. Jardim, de mãos postas como quem reza a um salvador, acolhendo o engº Sócrates no Funchal, acabado de desembarcar do Falcon? Eu sei que as fotografias às vezes mentem: um mau ângulo pode inverter a verdade de um momento. O problema é que aquela imagem correspondia exactamente ao conteúdo do momento. Sócrates desembarcou e Jardim disse-lhe "são 1300 milhões". Sócrates respondeu: "Ok, dou 1100". Jardim voltou-se para trás, para o seu povo, e disse-lhe: "no passado, eu jurei que o sr. Pinto de Sousa era um bandido. Mas agora quero jurar que o engº José Sócrates é um patriota e um amigo da Madeira". Sócrates sorriu, virou-se igualmente para trás e entregou ao seu assessor, sem ler, a folha onde Jardim tinha rabiscado as contas que suportavam a extraordinária factura de 1300 milhões da enxurrada da Madeira. Abriu os braços e exclamou: "há alturas na vida das nações em que o que menos conta é o dinheiro".
Segundo exemplo: depois de ter conseguido que o Governo lhe entregasse toda a área de exposições do CCB para servir de armazém à sua colecção particular de pintura, sem ter de pagar um tostão por isso e sem dar qualquer contrapartida; depois de ter conseguido que o Museu/Colecção Berardo fosse o único museu do país com entradas à borla (assim justificando o "êxito" e o "interesse público" do contrato celebrado com o eng.º Sócrates); depois de ter garantido que o Estado cumpria religiosamente o compromisso mútuo de meter meio milhão de euros por ano para compras destinadas a engrossar a sua colecção, o 'mecenas' Berardo achou-se desobrigado de fazer igual, preferindo pagar em espécie o meio milhão que lhe cabia. E quando a ministra, posta ao corrente do facto, se atreveu a arquear uma sobrancelha, ele veio, sobranceiro e no seu português típico: "if ministra no contente, I pack my bags and go!" Eu também vou propor às Finanças que, em vez de pagar o IRS em dinheiro, me aceitem uns manuscritos, umas roupas velhas, uns óculos partidos - coisas da minha colecção particular...
Terceiro exemplo: em 2006, o engº Sócrates ficou fascinado com o projecto de construção de um autódromo no Algarve. Nem o desastre da nacionalização (!) do autódromo do Estoril - (brilhante operação do também socialista Pina Moura, que ainda hoje sobrecarrega o erário público, sem qualquer utilidade) - o fez pensar um pouco, antes de se atirar de cabeça. Atirou-se: deu-lhe um projecto PIN, 130 hectares de Reserva Agrícola Nacional para urbanizarem e 12% de participação pública na empresa "privada" Parkalgar - o resto bancou o BCP, numa das suas geniais operações de crédito. Mas em 2009, segundo as escutas do "Sol", o então administrador do BCP, Armando Vara ("allways on my mind"...), desabafou com o secretário de Estado do Desporto que aquilo era "um sorvedouro de dinheiro... irracional, do ponto de vista económico". E, como lhe competia, enquanto administrador do credor, tentou, conta o "Sol", passar o crédito "tóxico" que tinha em carteira. Adivinhem para quem? Para os contribuintes, é claro. Segundo o jornal, Vara, disse a Laurentino Dias que "não há razão nenhuma para a Caixa não meter lá dez milhões", já que "aquilo só vai lá com capital público... sem preocupações de retorno". E, por isso, ele achava que "o chefe" (que já sabemos quem não é) "devia dar um conforto". Pois que "é irracional, mas está feito, e um dia qualquer o Estado nacionaliza aquilo - que é a solução". Preparem-se, pois: um dia seremos o único país do mundo que tem, não um, mas dois autódromos sem corridas e ambos comprados pelo Estado aos empreendedores visionários que os construíram. Estão a ver por que a Standard and Poor's não acredita em nós?
Querem mais exemplos? O contrato da auto-estrada do Pinhal Interior (procure no mapa), assinado à pressa entre a Brisa e a Mota-Engil, no mesmo dia em que o ataque à dívida pública atingia o máximo (tal como o contrato celebrado entre a APL e a mesma Mota-Engil, para o Terminal de Contentores de Alcântara, também assinado a correr, assim que se levantou publicamente a vontade de contestar o negócio, jurídica e politicamente). Mais 1200 milhões para reforçar a nossa posição de país com mais quilómetros de auto-estrada por habitante de toda a UE. Outro: o 'comboio-fantasma' de Oeiras ou as dívidas das empresas municipais, utilizadas como expediente para contornar os limites de endividamento das autarquias. Outro ainda: a arrogância dos accionistas das empresas participadas pelo Estado, recusando-se a acatar as instruções do Governo para suspender ou, ao menos, limitar os prémios de gestão, que são um insulto público. E este: os dois dias de tolerância de ponto e de caos nas cidades, porque vem aí o Papa e o país tem de parar.
Poderiam ser dezenas de exemplos. Mas não vale a pena, já. Quem quer perceber, percebeu há muito. Quem não quer, vai perceber da pior maneira. Só não digam, depois, é que não sabiam.
Texto publicado na edição do Expresso de 1 de Maio de 2010
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