Ao abrir a net, ontem de manhã, dou de caras com a morte do Saramago.
Paz à sua alma.
Condolências à dona Pilar.
Goste-se ou não do homem, compreende-se que a sua morte é notícia que merece destaque.
Mas, em vez de tal destaque, o país assistiu à mais pirosa e inimaginável manifestação de primitivismo intelectual e ‘informativo’.
Aceso o aparelho, eis que todo o dia não se falou noutra coisa. O Saramago para a esquerda, o Saramago para a direita, o Saramago para cima, o Saramago para baixo, o Saramago bebé, menino, jovem, homem feito, maduro, meia-idade, velho, em pé, sentado, a aldeia do Saramago, a casa do Saramago – que já não existe mas voltou a existir - o prémio Nobel, as condecorações, o diabo a quatro.
Tive que desligar aquilo, para não ficar completamente saramagalhado.
O nacional-pirismo consubstancia-se numa frase dos panegiristas da SIC Notícias, que devia ficar célebre:
“Ao nascer, Saramago tornou-se no mais novo habitante de Azinhaga”.
Tem piada. Eu próprio, quando nasci, era o mais novo habitante das avenidas novas. A não ser que tenha havido alguém a nascer exactamente no mesmo segundo. Esse alguém participaria, ex-aequo comigo, da invejável circunstância de ser o mais novo, circunstância aliás comum ao resto da humanidade, e até aos cães, quando ousam nascer.
À noite, aberta a televisão, foi um nunca acabar em todos os canais.
Até me apareceu, calcule-se, a prima do Saramago a dizer coisas.
Antes de desligar definitivamente as “comemorações”, detive-me uns cinco minutos a ver e ouvir o sermão da dona Clara Alves. Opinava a ilustríssima criatura que quem se atreve a não gostar do Saramago, para além de sofrer de preconceitos ideológicos agudos, é analfabeto. A filosofia é simples: quem não gosta do homem por ser comunista e ter feito o que fez enquanto tal, é um ordinário e um preconceituoso com duvidoso direito a exprimir-se; quem não leu os escritos do homem, não merece, sequer, ser considerado como sabendo ler. A filosofia é simples: ler Saramago é obrigatório.
No meio da pirosada, das primas do Saramago e do memorialismo totalitário da informação única, revela-se a mentalidade da senhora.
O nosso mundo intelectual é isto: a submissão própria ao politicamente correcto que, como tudo o que é obrigatório, é sempre de esquerda, e a imposição do politicamente correcto aos demais, sob pena de ‘preconceituosidade’ ou de analfabetismo.
O governo, ansioso por coisas que distraiam as pessoas do que interessa, decreta dois dias de luto nacional, o que não podia ser mais piroso. Vai daí, os lanzarotenses, compatriotas fiscais do falecido, decretam três! Fuerzia!, como diria o primeiro-ministro em castelhano técnico.
Do seu humilde púlpito – nada de parecido com os da dona Clara – o IRRITADO informa a prendada senhora: leu vários livros do Saramago. Leu, mas teve a desgraça de não encontrar neles, nem a contribuição inestimável dada à língua portuguesa, nem o interesse filosófico das obras em causa, coisas encomiasticamente defendidas pela senhora. Uma escrita prolixa, entediante, cheia de “palha” para dar peso e preço. Lembro-me de, ao fim de várias e penosas horas passadas a ler o “Ensaio Sobre a Cegueira”, me ocorreu pensar por que carga de água era aquilo um ensaio, bem como qual era a “mensagem” que, com tão inusitada “cegueira”, o escritor queria comunicar. Pensei, pensei, e cheguei à conclusão que, primeiro, o escrito nada tinha a ver com um ensaio, segundo, que estando, no livro, toda a humanidade cega, e havendo só uma senhora que via e conduzia os cegos, se tratava de uma parábola marxista, isto é, a humanidade - as “massas” - precisa de “vanguardas” que saibam a verdade e que as “guiem”.
Dirá a dona Clara, com certeza acompanhada por um exército de intelectuais, que esta interpretação se deve, ou a algum “preconceito ideológico”, ou a puro analfabetismo.
Cá fico, com o analfabetismo e os preconceitos que a Clara loira, já um tanto gasta, não deixaria de me atribuir, caso lesse esta prosa.
Acabo como comecei: paz à alma do Saramago, português, imigrante fiscal em terras espanholas, escritor de alguma valia, prémio Nobel sabe-se lá porquê; condolências à dona Pilar e felicidades na gestão da Casa dos Bicos, que já pertenceu à minha cidade e que a minha cidade vai pagar para dar à dona Pilar.
De profundis…
19.6.10
António Borges de Carvalho
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