“Entre trampa de vaca e palácios mirabolantes, a Índia é uma intensa viagem pelos ciclos da vida. Ora poéticos, ora crus. Um país onde, pelas fantasias, passeiam moscas...”
Vou a Jaipur por causa de um dos meus livros favoritos. Esse livro, chamado ‘Prova do Observatório’ foi escrito pelo argentino Julio Cortazar e estabelece um curioso paralelismo entre o observatório astronômico construído pelo marajá Jai Singh, em Jaipur, em 1728, e a viagem empreendida pelas enguias para desovarem, assim dando início a um novo ciclo. Trata-se de uma das mais belas alegorias que conheço para a vida, mas no meio das famílias indianas não consigo transportar-me para dentro do livro. Limito-me, por isso, a apreciar estranhas construções que me lembram pinturas de Mauritius Escher.
Depois dos sumptuosos palácios de Udaipur e de Jodhpur. Jaipur é desinteressante. Nada que se compare a Agra, no vizinho estado do Uttar Pradesh, onde chego num final de tarde que nunca mais esquecerei. Nunca mais. O exacto momento em que, ultrapassado o caos citadino, subo as escadas do hotel e os meus olhos poisam no Taj Mahal. Apaixono-me pelo templo do amor, fantasma na bruma do anoitecer. É indescritível a harmonia das formas, ângulos e arestas, o branco puro do mármore, o trabalho de ‘pietra dura’. Recortado contra o céu parece diáfano, inatingível.
“A materialização de todas as coisas puras”, escreveu o inglês Rudyard Kipling. Descrição com a qual concordo incondicionalmente ao visitar o mausoléu, deslumbrada com a sensação irreal de me passear pela história de amor entre Shah Jahan, imperador do povo Mughal no século XVII, e a sua segunda mulher, Muntaz Mahal. Desesperado com a morte de Mumtaz, ao dar à luz o 14º filho do casal, o imperador mandou construir um templo perfeito que a acolhesse pela eternidade. Vinte mil artifícios trabalharam no mármore translúcido, nos embutidos de flores traçados com pedras semipreciosas, nos minaretes e cúpulas, nos jardins erguendo o mais belo monumento construído pelo Homem que já vi.
É assim, com a sensibilidade à flor da pele, que apanho o comboio para aquela que considero uma importante etapa pessoal desta viagem. Sempre tive medo de tudo o que se relacione com morte. Não gosto de cravos por causa do cheiro que ficava nas ruas de Sarzedas depois dos cortejos fúnebres e nunca vi um morto. Até hoje. Ainda estou com as mochilas às costas, tentando evitar nas ruelas estreitas de varanasi, o lixo e as bostas de vaca, quando sou obrigada a subir um portal para deixar passar quatro homens que, em passo de corrida, transportam uma padiola com um morto. Respiro fundo. A cena é perfeitamente normal na cidade do deus Shiva e do rio da salvação. Aqui bate o coração do universo hindu e no Ganges lavam-se os pecados de toda a vida, purificam-se os mortos para a passagem do mundo físico ao espiritual.
Nada mais auspicioso para um hindu do que morrer e ser cremado no ghat (nome dado às escadarias de acesso ao rio) de Manikarnica, perto do qual me instalo, decidida a enfrentar os meus medos. Espessas colunas de fumo desprendem-se das piras fúnebres e as ruas por detrás do crematório são um amontoado labiríntico de lenha, de lojas e de templos hindus. Todos os dias ardem nas fogueiras do crematório principal da Índia mais de 250 corpos, cuja alma já partiu para outro karma, segundo a crença hindu. Assisto de longe às cerimônias. Impressionantes, mas não tanto. Talvez porque as pessoas estão embrulhadas em panos coloridos e não há choros e gritos, apenas rituais de transição.
No dia seguinte passeio de barco pela ‘mãe Ganga’. São seis da manhã, hora de um espectáculo colorido e único em que milhares de pessoas se acumulam nas escadarias praticado a Puja, cerimônia de homenagem ao nascer do Sol. Que me perdoem os hindus, mas o Ganges tem as águas mais sujas de que tenho memória. Dejectos sagrados de vaca, cinzas de mortos, carcaças de animais, resíduos industriais e, claro, um ou outro cadáver (homens santos, grávidas, pessoas mordidas por cobras, leprosos e crianças não são cremados, sendo atirados ao rio presos a pedras). Ora, é nessas águas, com mais bactérias por metro quadrado de que qualquer esgoto, que os hindus se lavam. Vejo-os a gargarejarem e sinto náuseas. Difíceis de conter, quando o barco se cruza com um cadáver azul em decomposição. Intenso.
Demasiado intenso, penso ainda a recompor-me no comboio vagaroso para Khajuraho. Nesta cidade tranqüila do Madyah Pradesh o que há para ver é o principio de um novo ciclo da vida. templos do século X, famosos pelas suas esculturas representando posições do Kama Sutra. E não só. Não reconheço do livro do amor e do sexo, a prática em que um guerreiro se compraz com o seu próprio cavalo.
‘Patricia Brito’
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