segunda-feira, 2 de junho de 2008

SONHO

Na vida dela, a expectativa pela universidade iniciou cedo a sua trajetória. Ainda menina, precipitada pelo sistema de seleção seriado, ela foi convocada a largar as preocupações pertinentes à sua adolescência recém inaugurada para preparar o seu futuro profissional. Nada a ver com a formação humana, presente em suas diversas maneiras nas várias fases da vida. Era a formalidade que lhe cobravam: provas que mobilizavam, transtornavam e deformavam o ano letivo, encolhendo-o todo numa só garrafa.
A concorrência invadiu a amizade limpa de interesses, os estudos apostilados esvaziaram o prazer das descobertas, a escolha da profissão despiu-se da leveza de pensar que o futuro ainda demora a chegar. Não foi sem dor o seu percurso, como afinal o dos outros jovens d sua geração. A exploração do corpo da mulher que seria um dia, as espinhas, os namoros, os pais que já não podiam lhe acolher como antes, os medos, os lutos, os lutos... tudo isso se misturava à imposição do vestibular nos seus ainda catorze anos, causando um tumulto no seu já tumultuado mundo adolescente.
Mas a dor era de todos: filhos, pais, professores. E como nos ritos de passagem, saúvas a morder o corpo, ausências prolongadas do convívio materno, ou seqüência de provas acachapantes representavam a tão propalada ascendência para a vida adulta. Quando não matam, esses ritos podem propiciar a real inserção na maturidade. Prosseguiu. Os pais, meio atônitos, muito inseguros a nova tarefa, e a empatia pela menina assustada que ainda li estava. O principio da realidade lhes alertava para os perigos de permitirem uma infância muito longa. Concordaram. E a vida foi passando..., e eles foram passando..., e passou.
Chegou o terceiro ano, aquele que no nosso tempo era ‘o ano do vestibular’. E no emaranhado de uma capacidade reflexiva por vezes precoce, ela concluiu que agora estava pronta para aquelas renúncias. Do alto da sua imaturidade pode, já então, olhar para trás e pensar como fora agressiva a precipitação dessa passagem; como, no recente passado, não estava pronta e, agora, sim. Estudou.
Ainda com resquícios do vendaval vivido, conciliou os conflitos e a indisciplina com o desejo de crescer, de vencer a etapa, de passar para a página seguinte. Queria livrar-se da assustadora sombra de repetir o tão malfadado ano. Conseguiu.
Na semana da matrícula ela era só ansiedade. As surpresas e burocracias do órgão público não lhe ofuscaram a satisfação. O misto da menina no corpo de mulher ganhou a confiança que estampava na face, no modo de vestir, na maneira do andar. Junto com a habilitação para dirigir, a matricula! As alegrias da maturidade mostravam suas faces.
E na véspera do tão esperado primeiro dia de aula arriscou dizer, em frase solta, - ‘amanhã não vou à universidade’. A mãe não lhe deu cabimento, sabia da sua ansiedade. Tentou tranqüilizá-la. A cabeça doeu, foi dormir cedo e ás cinco da manhã preparava-se para o novo mundo. A roupa, - ‘esta bom?’ – o caderno – ‘comprei um bem neutro’, (que lhe garantisse a distância da infância). O café, a hora. ‘Boa sorte!’ Munida dos novos documentos, deixou a sua mãe no trabalho e foi cumprir a sua desejada obrigação. Encontrou outros tantos jovens, ansiosos, esperançosos. Identificou a sala, tudo é tão grande! Ali sentaram, ali esperaram o primeiro professor, os primeiros ensinamentos.
Como na aula da saudade, aquela do encerramento, a primeira tem um sabor especial. Condensa num só momento um cabedal de expectativas e emoções e, junto com outros fatores, poderá ser responsável pela boa relação que o aluno terá com o curso escolhido. Passaram os minutos, as conversas nervosas. Guardaram.
Entre a decepção e o desconcerto esgotaram-se as horas desse primeiro compromisso sem que sequer uma satisfação lhes fosse dada. Sentiu-se oba. Alunos veteranos chegaram, pintaram os seus rostos, ofereceram lanches, encheram a manhã das alegrias esperadas. Mas a segunda aula também não aconteceu. E na outra, o professor veio avisar que estava doente. E no outro dia, mais um vazio. E a outra professora deu minutos da aula porque se sentia doente. E mais outro vazio.
A semana passou dessa maneira, quase toda. Amenizada por um ou outro professor que, ciente da responsabilidade do seu oficio, foi à turma desculpar-se pelos ausentes. Amenizada ainda pela infinidade das outras riquezas que o mundo universitário oferece; cinema debate, grupos de estudos que se formam espontaneamente, o contato com pessoas plurais e maravilhosa independência de ser responsável por si mesmo. Novamente precoce, ela percebeu o constrangimento nos olhos da mãe; é isso mesmo mamãe, são as frustrações da vida.
Que bom que ela e os outros possam transformar essa experiência, usá-la como referencia do que não deve ser. Mas o nosso sistema de ensino público precisa urgentemente rever os seus princípios e assumir a responsabilidade da imensurável tarefa que se propõe a cumprir.

‘Sandra Matoso Trombetta Quintans’

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