segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

FUI CUSPIDO PELA MORTE

Era uma terça feira de Março. Eu não pensava em nada. Vivia como um animal, tangido pelo seu algoz com um chicote, para apressar-lhe o passo. A tarde estava morna, como todo e qualquer ocaso, naquela estação do ano. Sem algum medo aparente, o coração acelerou os batimentos. O compasso chegou a arritmias alucinantes. Passei também a sentir uma ardência no peito, ao mesmo tempo em que uma dor aguda me debilitava. O sangue aumentava o seu fluxo. Ondas elétricas percorriam o braço esquerdo até as pontas dos dedos, e voltavam com a mesma celeridade. Um infarto, pensei. Baforava agonia. O pânico tomava conta de mim. Nada me dizia que não seria aquela, a hora chegada.
Logo vieram se somar aos sintomas, o atordoamento e um frio ignoto, - passivos de entorpecimento. Parecia estar desvanecendo numa letargia sem volta. Havia gemido, mas não havia sangue.nenhuma gota fora esparramada. Eu morria sem espargir. Não via a figura iluminada de nenhum deus; tampouco a famigerada que nos assalta no derradeiro momento da vida. Completamente envolto na obscuridade também me foi negado o direito de sonhar; sequer eu pude acompanhar lúcido, os instantes de transmutação. Era o meu encontro com a morte; e, eu estava como vim ao mundo, completamente só.
Imaginava que a razão continuaria ligada a alma; e que esta alma vagaria pelas ruas do Mundo, como se fora um devaneio remissivo, feito minhas historias – e eu poderia, antes do ultimo suspiro, rir dos meus próprios engonços. Posso até ter repreendido com alguma obscenidade. Seria parte do filme: o fulgor das auroras; uma flor rasteira de floresta virgem; a carruagem de Elias subindo ao céu; meninos pulando dos aceiros de um rio, após a enchente; uma paisagem morta pela janela, no caminho de volta a casa; a lua borrando as estradas, e com algodão-doce ao derredor; Lampião desafiando a volante, acompanhado da mais bonita das Marias; as minhas mulheres, todas elas de saias plissadas e camisas de cambraia; um quadro pintado com o rosto da minha mãe; um pé de manga rosada; incontáveis palavras arrancadas de suas páginas, e capas de livros servindo de degraus, para que eu, enfim, formasse a minha escada, em busca da fruta da mangueira mais alta, já citada...
- Mas, não! Apenas um negror mais que espesso; e um poço sem fundo me eram oferecidos, como valhacouto.
Passaram-se, durante a minha lacuna de consciência, eternos milésimos de segundos. O tempo não tinha significação ou razão de ser. Eu estava ali, na berlinda entre o bem e o mal – esperando quem sabe o julgamento... – E assim, tão rápido como o baque, um fio de luz cortou os ares, quão um relâmpago em dias de tempestade; e um sopro de vento chegou até os meus pulmões... – pelas ventas afogueadas da minha inércia.
Estava de volta daquela viagem que parecia definitiva, e que aparentemente, já dava sinais de bem-estar. Deitado nos braços do nada esperava ensimesmado pela terminação do ajuizamento, não importando a decorrência... – E mesmo que fosse de consternação e ranger de dentes, não houve a quem pedir clemência. Então, alguma coisa em mim queimaria no inferno de Dante; nas minas de enxofre do imperador Tibério, na ilha da Sicília, em tempos de domínio romano; no magma cuspido pelos vulcões das profundezas eternas, conforme a consignação de Deus.
Apaziguado o sofrimento veio-me uma constância elevada, inexcedível. Uma golfada de sangue marcou o meu regresso do coma. A tosse era a fiança de que a moléstia me dava outra chance. Lamentei, apenas, as dores do mundo. Como não poder existir na serenidade de meus dias? Que condição de vida era aquela que me foi infligida? Desejaria apenas, de agora em diante, ser-me vedado o direito de aguardar nas horas o mais gentil de todos os minutos; e entre um bocejo e outro, ser levado para morrer com dignidade, sem espetáculos para os alheios.

‘Misael Lóbrega de Sousa’

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