segunda-feira, 17 de março de 2008

O ESTRUPO DA MONTANHA

Estava quase findando a leitura de um velho texto de Jorge Luis Borges – “Otras inquisiciones” – quando me chega a mensagem de Márcia Costa, doutora em tênis e mais ainda em humanidades, contando a seguinte historieta, que mais parece um conto de terror:
No vale de São Felix, ao Sul do Chile , nascem dois rios alimentados por glaciares que estão aí desde o começo dos tempos. A origem desses cursos produzidos pelo degelo natural das estações quentes do ano garante a pureza das águas.
É a principal fonte de suprimento de água das populações campesinas dessa região. Recentemente, foram descobertas imensas jazidas de ouro e prata no fundo desses glaciares. Para arrancar das entranhas geladas essa riqueza toda será preciso construir dois imensos túneis, numa operação jamais vista desde que o espetáculo do Big Bang que lançou essa bolinha de gude chamada planeta Terra pela calçada da Via Láctea.
Dizem as más línguas que o projeto leva dinheiro de George Bush, o Velho. Não tenho como provar. Não importa quem está pagando: o certo é que o governo chileno já autorizou o estupro da montanha.
Caso venha a se concretizar o tal projeto, nunca a natureza será a mesma nesse lugar. Água pura nem pensar mais. Quanto ao equilíbrio do ecossistema é obvio que sofrerá as penas que todo o desvirginamento sem amor é capaz de trazer.
Mas o que tem a ver os glaciares desvirginados do Chile com a leitura das Inquisiciones de Borges?
Tudo.
Descobre o genial argentino que um imperador chinês chamado Che Huang-ti, foi não apenas o idealizador da Muralha da China, com suas sete ou oito léguas de extensão, como também o sujeito que mandou o seu exército queimar todos os livros existentes no país anteriores àquela dta. Queria que a história começasse com ele.
As duas situações me fazem lembrar a delicadeza da obra de Gabriel Mistral de um lado dessa mesma cordilheira, toda cinzelada com requintes de uma catedral iluminada e do outro a tragédia dessa montanha de cristal barbaramente assassinada pela cobiça dos homens.
O homem não tem limites. Na ternura ou na iniqüidade, na vilania assim como na genialidade, alcança os extremos que Deus e o Diabo escrevem no seu currículo.
É mesmo uma pena que nunca mais se tenha visto nenhum imperador, presidente, sequer inspetor de quarteirão construindo ou botando sentido em monumentos capazes de atravessar uma banda do Mundo.
Já os livros quase todo o dia milhares deles são queimados a céu aberto. Principalmente o Livro da Lei.

‘Luiz Augusto Crispim’

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