segunda-feira, 17 de março de 2008

TUNEIS ATRAVÉS DAS TREVAS

Flannery O’Connor (1925-64) é uma figura absolutamente singular na literatura norte-americana do século XX. Nascida em Savannah, Georgia, teve uma vida marcada pelo lúpus, doença hereditária que matou o seu pai e que haveria de a debilitar gradualmente, desde os primeiríssimos sintomas (1951) até à morte prematura, aos 39 anos. Fechada na quinta familiar, em Milledgeville, rodeada de silêncio e uma centena de pavões, Flannery viveu para a escrita e nada mais do que a escrita. E se a bibliografia é escassa — dois romances, três dezenas de contos e uns centos de cartas —, a força brutal da sua ficção coloca-a no mesmo patamar de um William Faulkner.

Depois de ter oferecido aos leitores portugueses os magníficos contos de Um Bom Homem é Difícil de Encontrar e o interessante romance de estreia (Sangue Sábio), a Cavalo de Ferro prossegue a edição da obra completa de O’Connor com o segundo livro de contos, trabalhado de forma obsessiva pela escritora até ao fim da vida e publicado postumamente.
Nas nove narrativas de; Tudo o que sobe deve convergir, o leitor das outras obras de O’Connor reconhecerá as mesmas paisagens (o Sul dos campos de algodão, das florestas a perder de vista e das fazendas incapazes de lidar com o fim da escravatura), os mesmos temas; (questões raciais ou de fé, em fundo de apocalipse moral) e os mesmos tipos humanos (seres à deriva, em busca de uma salvação impossível).
Este é um “mundo da culpa e da dor” onde toda a gente cai desamparada, sem saber o que fazer das sombras malignas que envenenam as relações entre pais e filhos, homens e mulheres, brancos racistas e negros que não conseguem libertar-se. As personagens tentam muitas vezes mudar o curso das suas existências, mas está quase sempre tudo “consumado”. Há um ímpeto fatal em volta do que as pessoas fazem e dizem, uma espécie de maldade que é como o ar que se respira. Quem busca um rasto de compaixão humana, falha. Quem pretende fugir do abismo, cai nele. Os olhos dos outros são sempre “espelhos retorcidos” que devolvem imagens medonhas, grotescas, visões infernais. E as epifanias não redimem, antes projetam quem as vive para o “centro de um mistério desconfortável”.
O que torna estes contos inesquecíveis é a escrita de O’Connor, tensa como uma corda muito esticada, quase a partir. Mesmo quando descreve as mudanças da luz, um gesto súbito ou a boca que é “como uma grande rosa que tivesse escurecido e murchado”, há uma energia que se acumula e que acaba por conduzir, quase sempre, à explosão trágica de um final que é como um uppercut em cheio nos queixos do leitor. O desfecho de Os Coxos Hão-de Entrar Primeiro, um dos mais espantosos e terríveis que alguma vez li, é um bom exemplo.
As histórias de O’Connor são túneis que perfuram as trevas da condição humana. Túneis em que entramos às cegas, sem saber se alguma vez deles sairemos.
[Texto publicado na revista Time Out Lisboa]

Sem comentários: