terça-feira, 22 de janeiro de 2008

MEUS VERSOS INTIMOS

Há quanto tempo não deparava eu com uma moça a fumar? Anos, décadas, talvez. Desde que o hábito entrou para o index dos ambientalistas e a fazer parte da cartilha da execreção pública dos fumantes. Pois essa moça fumava. Ou melhor, tentava inutilmente.
Dirigiu-se a mim com uma expressão melancólica no rosto, acendendo na minha memória a imagem de Marlene Dietrich com aqueles olhos semicerrados, por trás de uma diáfana cortina de fumaça, murmurando em claríssimo português:
- Por acaso o senhor tem fosforos?
A pergunta era formulada a cores, ao vivo, em pleno século XXI, mas eu ouvia em preto-e-ranco, como se estivesse em plena Segunda Guerra Mundial, ao som de Lili Marlene, a bordo de algum luxuoso transatlântico perigosamente exposto aos torpedos de Hitler e ao olhar langoroso daquel moça a fumar.
Não, eu não tinha fósforos, tinha horror ao Füerher e deixara de fumar havia mais de trinta anos.
A moça fez um ar tão desolado que por pouco não consenti em voltar a fumar, correndo ao quiosque mais próximo para encomendar um maço de Continental sem filtro, somente para acender junto com ela aquele cinematógrafico cigarro que continuava apontado para os demais vícios que ainda hoje carrego comigo pela vida fora.
Afinal, por que tivera eu de abandonar o fumo assim, tão precipitadamente se a ultima grande guerra já havia acabado pouco antes de eu nascer e a outra, a guerra contra o fumo, nem havia começado ainda?
Ao menos, poderia ter deixado o gesto heróico para aquela ocasião. Podendo, agora, sacar do bolso um Du Pont dourado, numa encenação elegante e convincente de Humphrey Bogart em Casablanca e, somente aí acender o fogo sagrado que alumiaria o nosso tabagismo sacrificial.
Era o que se poderia chamar de um perfeito gran finale.
Ao menos poderia manter aquela chama ali bruxuleando, qual centelha inextinguível, na medida certa das eternidades precárias que acendem os nossos cigarros e apagam os nossos sonhos.
Depois, acenderia o meu próprio cigarro dinte dos olhos estarrecidos daquela inesperada Marlene Dietrich, confidenciando-lhe que aquela seria a minha última tragada na vida. Talvez até lhe recitasse Versos Íntimos de Augusto, só para impressiona-la um pouco mais:
"Toma um fosforo,
acende o teu cigarro.
O beijo, amigo,
é a vérpera do escarro"
Não, decididamente, não. O poeta poderia ser mal interpretado. Provávelmente, apenas ouviria em silêncio a moça dizer, simplesmente:
- Muito obrigrado, o senhor foi muito gentil.
Apagaria, então, o meu último cigarro e procuraria, com certeza, a companhia de outro poeta, desta feita o doce e terno Manoel Bandeira, para tomarmos um chope no Bar Savoy, antes de decidirmos se faríamos um pneumotorax no dia seguinte ou se preferiríamos ouvir juntos um tango argentino nesta tarde chuvosa de Maio.
- “Luiz Augusto Crispim” –

Sem comentários: