sábado, 19 de janeiro de 2008

O embuste de Napoleão

A TALHE DE FOICE • Leandro Martins
Vinte e cinco anos depois da sua morte, o Elvis Presley continua a aparecer por aí, a crer nos testemunhos que a toda a hora chegam aos media, principalmente nos Estados Unidos, que é país farto em testemunhos «com provas documentais», nem que sejam de «raptos realizados por alienígenas» ou de «crimes das ditaduras comunistas». Durante muitos anos, também pela Europa, havia quem não acreditasse na morte do Hitler, que continua a assombrar de negras memórias todos quantos o abominam mas também, o que é pior, a suscitar nostalgias a quantos o querem recuperar. De vez em quando é assim, às golfadas de revivalismo nem a lei da morte tem poderes para conservar sepultados os fantasmas de um passado morto. E, normalmente, as delicadas operações de ressurreição, decerto por inabilidade e incompetência na recitação dos encantamentos e na manipulação das mezinhas, operam uma reprodução que dá para o torto e devolvem-nos um sujeito que nem para sósia do finado serve.
Assim ressuscitadas, certas figuras costumam usar-se apenas para «emendar» o passado, para limpá-lo - hoje dir-se-á «branquear» - para reescrever a história e para dela sacar depois lições diversas daquelas que foram. Para, afinal, tornar, com um passado assim desfigurado, um presente mais plausível e funcional, a gosto do que se quer.
Tudo isto vem a propósito de duas notícias que fui encontrar lado a lado (decerto por uma daquelas coincidências que por vezes sucedem) e que relatam dois factos que nada parece relacionar: primeira, a do protesto que terá reunido, no passado sábado, algumas dezenas de freiras que marcharam pelas ruas de Monterrey, no México, cidade onde se exibiu um filme «baseado no livro Os Crimes do Padre Amaro, de Eça de Queirós; segunda, a notícia de que o governo francês recusou autorização para que fossem incomodar o corpo de Napoleão para lhe fazerem testes de ADN. O cientista que a solicitou pretende «provar» que o cadáver depositado nos Invalides, em Paris, não é o do defunto imperador.
Pois não, as duas notícias não parecem relacionar-se. Mas... eis que nos descrevem o argumento, sacado ao livro de Eça - no filme não se trata de um padre que, servindo-se da sua «autoridade moral», engravida a filha da hospedeira e a abandona à sua triste sorte para esconder o escândalo e prosseguir a carreira. A coisa passa-se com um padre que «rompe o celibato com uma menor e se relaciona com o narcotráfico». Assim reescrita, a história tem tanto a ver com Eça e a sua moral como os versos de um poeta têm a ver com os genes em que a avó lhe terá passado a «facilidade para as rimas». Adaptar o passado ao presente é sempre perigoso, quando não sai apenas... ridículo.
Quanto a Bonaparte, não sabemos para quê o tal cientista pretende demonstrar que o corpo sepultado na basílica não pertence ao verdadeiro Napoleão. Talvez reescrever a história a partir de um embuste. Porque não se fica certa gente pelos bustos, já que a história é, para eles, coisa que se pode manipular?

Sem comentários: